segunda-feira, 12 de novembro de 2018

A cápsula

A Gemini V em exposição na Praça da Sé, em São Paulo, em 1966 - Acervo Estadão

Todo mundo foi ver a Gemini V no Passeio Público (até a enchente esteve lá, uma noite). Todo mundo, menos ele. Não que se colocasse fora da era espacial ou abominasse os Estados Unidos. Deixou de ir por preguiça. É daqueles que, para participarem de um acontecimento histórico, exigem que o acontecimento se verifique no bairro, de preferência na rua onde moram. Em horário cômodo.
Mas chegou o neto de longes plagas, doido de vontade de ver a cápsula, e sem condições para ir sozinho ao centro da cidade. Pediu ao avô que o levasse.
Nunca! Está um calor de lascar.
A gente toma uns sorvetes e vai em frente.
Sem um pingo d’água em casa!
E daí? Pra ver a Gemini não precisa de água. Astronauta é que precisa de muita, pra não desidratar no espaço.
Amanhã nós vamos, menino.
Amanhã a cápsula sobe pra Petrópolis e não volta mais ao Rio. Você parece que não lê jornal!
Impossível resistir. Os dois se mandaram para o centro. Lá estava, no jardim, convidativa como um circo, a barraca de plástico encerrando a supermáquina. “Que chateação!” — pensou o velho. O neto pensava exatamente o contrário. Tanto que, mal avistou a barraca, acelerou o passo, deixando o avô à distância. Em disparada entrou no recinto.
A progressão nas duas escadinhas laterais era lenta, porque os visitantes queriam ver bem a cápsula; alguns o faziam com ar entendido, de quem já entrou em órbita e é íntimo do Schirra e do Cooper. Certamente, para o garoto o ideal seria que todos fossem embora e ele tomasse posse da cápsula. Mal subiu o primeiro degrau, estendeu as mãos para o plástico da cobertura, alisou-o como quem faz carícia. Depois, os dedos passaram ao revestimento metálico. Apalpava a matéria com força, para testá-la, talvez para comunicar-lhe toda a sua emoção.
Olhe para dentro, repare no painel, nos assentos do piloto e do copiloto — sugeriu o visitante de trás, vendo que o garoto não desatava.
Mas ele não tinha tanto olhos de ver quanto mãos de pegar. O tato procurava convencer-se da materialidade da cápsula, esgotar a percepção; depois, a vista que entrasse com seu jogo. Meteu a unha no casco de titânio, querendo tirar uma lasquinha que fosse. Conseguiu uns fiapos, recolhidos imediatamente ao bolso da camisa. Depois arranhou a bandeira norte-americana pintada na fuselagem. Sem a menor intenção de desacato: para conseguir uns grânulos de tinta vermelha das listras, que serviriam, com os fiapos, de eterna recordação e comprovação do encontro, se os colegas duvidassem.
Pressionado pela fila, teve de descer do outro lado, mas avisou: “Vou subir muitas vezes”. E subiu e desceu tantas vezes, contornando a barraca, que mais parecia a própria cápsula, dando voltas à Terra. Já agora, eram os olhos que desfrutavam a viagem. Tiravam fotos retinianas de cada instrumento, cada botão, cada partícula prestigiosa do prestigioso conjunto.
E não descansou. Concluído o voo orbital, aterrissou junto ao funcionário incumbido de dar explicações a quem quisesse. Crivou-o de perguntas, discutiu pontos técnicos da próxima alunissagem. A certa altura, o funcionário coçou a cabeça:
Isso eu não sei informar, me faltam dados… Desculpe.
Ao voltarem para casa, confidenciou ao avô:
Soprei em cima do vidro, para deixar o meu hálito. E risquei como pude minhas iniciais.
De sorte que o avô regressou sem ter visto propriamente a Gemini V, mas ainda a está observando, perfeita, em pleno voo, na fisionomia grave do garoto, que ainda não regressou do cosmo.
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

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