terça-feira, 23 de outubro de 2018

Tio Galileu

A mãe, tão pobre, deu Betinho àquele homem: agradasse ao tio Galileu, capaz de morrer de-uma hora para outra, poderia ser o herdeiro.
Depois de partir lenha, puxar água do poço, limpar o poleiro do papagaio, o menino enxugava a louça para a cozinheira. Toda noite, Betinho subia a escada, para levar o urinol e tomar a bênção ao tio Galileu. Batia na porta: “Entre, meu filho”. O rapaz beijava a mão — branca, mole e úmida mãe-d’água. No domingo recebia a menor das moedas, que o padrinho desenterrava entre os nós do lenço xadrez.
Tio Galileu raramente saia e, ao tirar o paletó, exibia duas rodelas de suor na camisa.
Arrastava os pés, bufando, sempre a mão no peito. Afagava a cabecinha do papagaio, que sacudia o pescoço e eriçava a penugem: "Piolhinho... piolhinho..." Subindo a escada, dedos crispados no corrimão, isolava-se no quarto. O assobio através da porta: alegria de contar o dinheiro?
Fechava a porta e conduzia a chave. Diante dele era feita a limpeza, pelo rapaz ou pela negra, nunca por Mercedes. Sentado na cama, cocando eterno pozinho na perna, vigiava a pessoa que varria. E não assobiava com alguém no quarto. Instalado na cama que, essa, ele mesmo arrumava, sem permitir que virassem o colchão de palha.
Mercedes fazia compras, perfumada e de sombrinha azul. O homem discutia com ela, que o arruinava, por sua culpa sofria de angina.
Domingo, a negra de folga, Betinho preparava o café para Mercedes. Abria a porta, esperava acomodar-se à penumbra do quarto e, ao pousar a bandeja, sentia entre os lençóis a fragrância de maçã madura guardada na gaveta. Tio Galileu não admitia que Betinho ou a negra a surpreendessem de quimono vermelho pela casa.
Uma noite Mercedes surgiu no quarto de Betinho. Já deitado, luz apagada. Sentou-se ao pé da cama, casara com tio Galileu por ser velho, o primeiro a anunciar que morria de uma hora para outra. Mentira, para iludir as pessoas e servir-se delas sem pagar. Não sofria do coração, nem sabia o que era coração, a esconder mais dinheiro entre a palha. Ao crepitar o colchão lá no quarto o avarento remexia no tesouro. Tão mesquinho, não havia de morrer antes que fosse uma velhinha.
Um bruto, que a esquecia, dormindo em quarto separado, com medo de que, se fechasse os olhos, alguém fosse roubá-lo. Ó diabo, ela o xingou, pesteado como o papagaio louco, que a bicara e lhe deixara, no dedo o sinal. O rapaz inclinou-se para beijar o dedinho gordo. Mercedes ergueu-se e jurou que, se o monstro morresse, daria a Betinho o que lhe pedisse.
O rapaz não pôde dormir e, meia hora depois,: saltou a janela. Agarrou no poleiro o papagaio, cabeça escondida na asa — os piolhos corriam pelo bico de ponta quebrada. Torceu como um lenço molhado o pescoço do bicho e o enterrou no quintal.
Dia seguinte o homem buscou o papagaio por toda a casa, a assobiar debaixo de cada árvore. Betinho sugeriu que a ave fugira. Foi colocar o vaso sob a cama e, ao tomar a bênção ao padrinho, o piolho correu de sua mão para a do velho — um dos piolhos vermelhos da peste.
Mercedes voltou ao seu quarto. Reclinada na cadeira, amarrava e desamarrava o cinto.
Noite quente, queixou-se do calor, abriu o quimono: nua sob o roupão. — Vá — disse a mulher. — Vá, meu bem. Primeiro o papagaio. Agora o velho.
Betinho ficou de pé. Tremia tanto, que ela o amparou até a porta:
Vá, meu amor. A vez do velho.
Hora de pedir a bênção. Betinho subiu a escada. Aos passos no corredor o avarento, entre a bulha do colchão, perguntava quem era. Aquela noite falou. Betinho abriu a porta, avançou lentamente a cabeça. Tio Galileu deitara-se vestido, o saquinho de fumo derramado sobre o colete de veludo. O último cigarro, sem poder enrolar a palha com os dedos trementes...
Olho arregalado, a boca negra não abençoou Betinho. Fazia-se de morto, nunca mais fingiria.
Tio Galileu não gritou. Nem mesmo fechou os olhos, mais fácil que com o papagaio.
Betinho afogou-lhe a boca arreganhada debaixo do travesseiro.
Os pés descalços de Mercedes desciam a escada. Ele ergueu o colchão, rasgou o pano, revolveu a palha: nada. Deteve-se à escuta: os passos perdidos da mulher. Avisá-la que o velho os enganara. Era tarde, ela abria a janela aos gritos:
Acudam. Assassino! Matou Galileu …
Dalton Trevisan, in Novelas nada exemplares

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