Pareço
conhecer nos menores detalhes essa nordestina, pois se vivo com ela.
E com muito adivinhei a seu respeito, ela se me grudou na pele qual
melado pegajoso ou lama negra. Quando eu era menino li a história de
um velho que estava com medo de atravessar um rio. E foi quando
apareceu um homem jovem que também queria passar para a outra
margem. O velho aproveitou e disse:
– Me
leva também? Eu bem montado nos teus ombros?
O
moço consentiu e passada a travessia avisou-lhe:
– Já
chegamos, agora pode descer.
Mas
aí o velho respondeu muito sonso e sabido.
– Ah,
essa não! É tão bom estar aqui montado como estou que nunca mais
vou sair de você!
Pois
a datilógrafa não quer sair dos meus ombros. Logo eu que constato
que a pobreza é feia e promíscua. Por isso não sei se minha
história vai ser – ser o quê? Não sei de nada, ainda não me
animei a escrevê-la. Terá acontecimentos? Terá. Mas quais? Também
não sei. Não estou tentando criar em vós uma expectativa aflita e
voraz: é que realmente não sei o que me espera, tenho um personagem
buliçoso nas mãos e que me escapa a cada instante querendo que eu o
recupere.
Esqueci
de dizer que tudo o que estou agora escrevendo é acompanhado pelo
rufar enfático de um tambor batido por um soldado. No instante mesmo
em que eu começar a história – de súbito cessará o tambor.
Vejo
a nordestina se olhando ao espelho e – um rufar de tambor – no
espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos
intertrocamos. Não há dúvida que ela é uma pessoa física. E
adianto um fato: trata-se de moça que nunca se viu nua porque tinha
vergonha. Vergonha por pudor ou por ser feia? Pergunto-me também
como é que eu vou cair de quatro em fatos e fatos. É que de repente
o figurativo me fascinou: crio a ação humana e estremeço. Também
quero o figurativo assim como um pintor que só pintasse cores
abstratas quisesse mostrar que o fazia por gosto, e não por não
saber desenhar. Para desenhar a moça tenho que me domar e para poder
captar sua alma tenho que me alimentar frugalmente de frutas e beber
vinho branco gelado pois faz calor neste cubículo onde me tranquei e
de onde tenho a veleidade de querer ver o mundo. Também tive que me
abster de sexo e de futebol. Sem falar que não entro em contacto com
ninguém. Voltarei algum dia à minha vida anterior?
Duvido
muito. Vejo agora que esqueci de dizer que por enquanto nada leio
para não contaminar com luxos a simplicidade de minha linguagem.
Pois como eu disse a palavra tem que se parecer com a palavra,
instrumento meu. Ou não sou um escritor? Na verdade sou mais ator
porque, com apenas um modo de pontuar, faço malabarismos de
entonação, obrigo o respirar alheio a me acompanhar o texto.
Também
esqueci de dizer que o registro que em breve vai ter que começar –
pois já não aguento mais a pressão dos fatos – o registro que em
breve vai ter que começar é escrito sob o patrocínio do
refrigerante mais popular do mundo e que nem por isso me paga nada,
refrigerante esse espalhado por todos os países. Alias foi ele quem
patrocinou o último terremoto em Guatemala. Apesar de ter gosto do
cheiro de esmalte de unhas, de sabão Aristolino e plástico
mastigado. Tudo isso não impede que todos o amem com servilidade e
subserviência. Também porque – e vou dizer agora uma coisa
difícil que só eu entendo – porque essa bebida que tem coca é
hoje. Ela é um meio da pessoa atualizar-se e pisar na hora presente.
Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior
nem melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e
expirando. Na verdade – para que mais que isso? O seu viver é
ralo. Sim. Mas por que estou me sentindo culpado? E procurando
aliviar-me do peso de nada ter feito de concreto em benefício da
moça. Moça essa – e vejo que já estou quase na história –
moça essa que dormia de combinação de brim com manchas bastante
suspeitas de sangue pálido. Para adormecer nas frígidas noites de
inverno enroscava-se em si mesma, recebendo-se e dando-se o próprio
parco calor. Dormia de boca aberta por causa do nariz entupido,
dormia exausta, dormia até o nunca.
Clarice
Lispector, in A hora da estrela
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