Mas
o preto que morava na boca do brejo, quando calculou que os outros já
teriam ido embora, saiu do seu esconso, entre as taboas, e subiu aos
degraus de mato do pé do barranco. Chegou-se. Encontrou vida funda
no corpo tão maltratado do homem branco; chamou a preta, mulher do
preto que morava na boca do brejo, e juntos carregaram Nhô Augusto
para o casebre dos dois, que era um cofo de barro seco, sob um tufo
de capim podre, mal erguido e mal avistado, no meio das árvores,
como um ninho de maranhões.
E
o preto foi cortar padieiras e travessas, para um esquife, enquanto a
preta procurava um coto de vela benta, para ser posta na mão do
homem, na hora do “Diga Jesus comigo, irmão”...
Mas,
nessa espera, por surpresa, deu-se que Nhô Augusto pôs sua pessoa
nos olhos, e gemeu:
— Me
matem de uma vez, por caridade, pelas chagas de Nosso Senhor...
Depois,
falou coisas sem juízo, para gente ausente, pois estava lavorando de
quente e tinha mesmo de delirar.
— Deus
que me perdoe, — resmungou a preta, — mas este homem deve de ser
ruim feito cascavel barreada em buraco, porque está variando que faz
e acontece, e é só braveza de matar e sangrar... E ele chama por
Deus, na hora da dor forte, e Deus não atende, nem para um fôlego,
assim num desamparo como eu nunca vi!
Mas
o negro só disse:
— Os
outros não vão vir aqui, para campear defunto, porque a pirambeira
não tem descida, só dando muita volta por longe. E, como tem um
bezerro morto, na biboca, lá de cima vão pensar que os urubus
vieram por causa do que eles estão pensando...
Deitado
na esteira, no meio de molambos, no canto escuro da choça de chão
de terra, Nhô Augusto, dias depois, quando voltou a ter noção das
coisas, viu que tinha as pernas metidas em toscas talas de taboca e
acomodadas em regos de telhas, porque a esquerda estava partida em
dois lugares, e a direita num só, mas com ferida aberta. As moscas
esvoaçavam e pousavam, e o corpo todo lhe doía, com costelas também
partidas, e mais um braço, e um sofrimento de machucaduras e cortes,
e a queimadura da marca de ferro, como se o seu pobre corpo tivesse
ficado imenso.
Mesmo
assim, com isso tudo, ele disse a si que era melhor viver. Bebeu
mingau ralo de fubá, e a preta enrolou para ele um cigarro de palha.
Em sua procura não aparecera ninguém. Podia sarar. Podia pensar.
Mas,
de tardinha, chegou a hora da tristeza; com grunhidos de porcos,
ouvidos através das fendas da parede, e os ruflos das galinhas,
procurando poleiro nos galhos, e a negra, lá fora, lavando as
panelas e a cantar:
As
árvores do Mato Bento
deitam
no chão p’ra dormir...
E
havia também, quando a preta parava, as cantigas miúdas dos
bichinhos mateiros e os sons dos primeiros sapos.
Esfriou
o tempo, antes do anoitecer. As dores melhoraram. E, aí, Nhô
Augusto se lembrou da mulher e da filha. Sem raiva, sem sofrimento,
mesmo, só com uma falta de ar enorme, sufocando. Respirava aos
arrancos, e teve até medo, porque não podia ter tento nessa
desordem toda, e era como se o corpo não fosse mais seu. Até que
pôde chorar, e chorou muito, um choro solto, sem vergonha nenhuma,
de menino ao abandono. E, sem saber e sem poder, chamou alto
soluçando:
— Mãe...
Mãe...
O
preto, que estava sentado, pondo chumbada no anzol, no pé da porta
de casa, ouviu e ficou atrapalhado; chamou a preta, que veio ligeira
e se enterneceu: — Não faz assim, seu moço, não desespera. Reza,
que Deus endireita tudo... P’ra tudo Deus dá o jeito!
E
a preta acendeu a candeia, e trouxe uma estampa de Nossa Senhora do
Rosário, e o terço.
Agora,
parado o pranto, a tristeza tomou conta de Nhô Augusto. Uma tristeza
mansa, com muita saudade da mulher e da filha, e com um dó imenso de
si mesmo. Tudo perdido! O resto, ainda podia... Mas, ter a sua
família, direito, outra vez, nunca. Nem a filha... Para sempre... E
era como se tivesse caído num fundo de abismo, em outro mundo
distante.
E
ele teve uma vontade virgem, uma precisão de contar a sua desgraça,
de repassar as misérias da sua vida. Mas mordeu a fala e não
desabafou. Também não rezou. Porém a luzinha da candeia era o
pavio, a tremer, com brilhos bonitos no poço de azeite, contando
histórias da infância de Nhô Augusto, histórias mal lembradas,
mas todas de bom e bonito final. Fechou os olhos. Suas mãos, uma na
outra, estavam frias. Deu-se ao cansaço.
Dormiu.
E
desse modo ele se doeu no enxergão, muitos meses, por que os ossos
tomavam tempo para se ajuntar, e a fratura ex posta criara bicheira.
Mas os pretos cuidavam muito dele, não arrefecendo na dedicação.
— Se
eu pudesse ao menos ter absolvição dos meus pecados!...
Então
eles trouxeram, uma noite, muito à escondida, o padre, que o
confessou e conversou com ele, muito tempo, dando-lhe conselhos que o
faziam chorar.
— Mas,
será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruindade que fiz, e
tendo nas costas tanto pecado mortal?!
— Tem,
meu filho. Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo do
pé de arrependido nenhum...
E
por aí a fora foi, com um sermão comprido, que acabou depondo o
doente num desvencido torpor.
— Eu
acho boa essa ideia de se mudar para longe, meu filho. Você não
deve pensar mais na mulher, nem em vinganças. Entregue para Deus, e
faça penitência. Sua vida foi entortada no verde, mas não fique
triste, de modo nenhum, porque a tristeza é aboio de chamar o
demônio, e o Reino do Céu, que é o que vale, ninguém tira de sua
algibeira, desde que você esteja com a graça de Deus, que ele não
regateia a nenhum coração contrito!
— Fé
eu tenho, fé eu peço, Padre...
— Você
nunca trabalhou, não é? Pois, agora, por diante, cada dia de Deus
você deve trabalhar por três, e ajudar os outros, sempre que puder.
Modere esse mau gênio: faça de conta que ele é um poldro bravo, e
que você é mais mandante do que ele... Peça a Deus assim, com esta
jaculatória: “Jesus, manso e humilde de coração, fazei meu
coração semelhante ao vosso”.
E,
páginas adiante, o padre se portou ainda mais excelente mente,
porque era mesmo uma brava criatura. Tanto assim, que, na despedida,
insistiu:
— Reze
e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com
sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E
você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a
sua hora e a sua vez: você há de ter a sua.
Guimarães
Rosa, in A hora e vez de Augusto Matraga
“O diabo é às brutas; mas Deus é traiçoeiro!” ► Muito bom
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