Visito,
em Copacabana, a biblioteca de Antonio Carlos Secchin. Fomos colegas
de primário. Levei de presente uma cópia de nosso caderno de
formatura, na Escola Dr. Cócio Barcellos – que ainda resiste em
uma esquina da avenida Copacabana. Um vínculo antigo e vago (ralos
vestígios) nos liga.
A
biblioteca de Secchin é admirável. Mais do que as primeiras
edições, os autógrafos célebres e os manuscritos originais,
impressiono-me com a ordem severa que meu amigo lhes impõe. Rigorosa
escala cronológica, ela se desenrola como uma viagem pela história
da literatura brasileira.
Com
sua mente de cientista, Secchin luta para ordenar e conter o que não
se ordena nem se contém. A sombra de Borges, perfilada às minhas
costas, me escolta pelos estreitos corredores. A literatura não cabe
em um livro, tampouco em uma biblioteca. Livros e bibliotecas são
esforços humanos insuficientes para ordenar o que não aceita
qualquer ordem. A cronologia, que Secchin pratica com devoção, é
insuficiente para dar conta da escrita.
Não
é só em uma biblioteca fabulosa, como a de Secchin, que me vem esse
sentimento. Um livro o produz também: por exemplo, Pensamento
alemão no século XX, conjunto de ensaios organizado por Jorge
de Almeida e Wolfgan Bader (Cosac Naify / Goethe Institut São
Paulo). A reunião de onze ensaios, sobre Habermas, Adorno, Benjamin,
Heidegger, me confronta, antes de tudo, com minhas insuficiências.
Quanto mais leio, menos sei. Em vez de nos tornar mais sábios, a
leitura nos dá a dimensão de nossa ignorância.
Penso
na criança que, ao tentar agarrar uma pipa, só consegue reter
alguns fios de papel. No astrônomo que, diante de seu telescópio,
deseja devassar o cosmos, mas fica com o tênue rasto de uma estrela.
No médico que, examinando um corpo doente, e mesmo de posse dos mais
modernos instrumentos, se inquieta com o que não pode ver.
O
mesmo espanto, eu imagino, sentiram intelectuais como Renato Mezan,
Gabriel Cohn, Isabel Loureiro, Zeljko Loparic, diante dos pensadores
que lhes coube retratar. Mesmo desassombro, ainda mais forte, que
sinto enquanto avanço pelos corredores da biblioteca de Secchin.
Quantos livros não li! Quantos jamais lerei! A visão do que me
escapa me massacra.
Por
mais que lutemos, ficamos só com vestígios do que tentamos reter.
Como o astrônomo a quem resta a imagem de uma estrela morta ou o
médico que esbarra em um vírus invisível, é preciso suportar essa
limitação. A palavra apropriada para essa experiência me vem,
justamente, de Vestígios, a coleção de pequenas narrativas
que o filósofo alemão Ernst Bloch publicou em 1930, objeto de um
dos mais belos ensaios do livro, assinado por Carlos Eduardo Jordão
Machado.
Há
alguns anos, em uma edição espanhola, ou francesa – pois não
conheço o alemão –, eu o li. Percorro as estantes de minha
biblioteca em busca do livro, não o encontro. Sempre tenho a
impressão de que minha biblioteca engole livros. Vários dos livros
que li e amei nela desapareceram para sempre. Talvez eu os tenha
emprestado. Talvez eu os tenha perdido. Não sei bem. Para
simplificar, prefiro crer que minha biblioteca é um pequeno monstro
devorador.
Por
mais que eu a ordene, jamais me aproximarei da perfeição que
Secchin pratica. Admiro o esforço e a concentração de meu amigo,
mas, na verdade, não sei se os quero para mim. Não sei viver sem
uma boa dose de desordem, ou não me sinto vivo. Aí pago esse preço:
saio em busca do livro de Bloch e não o encontro. Pela internet, já
encomendei outro exemplar, mas ele só chegará em abril.
Lembra
Machado que Vestígios é uma reunião desordenada de fábulas,
contos de fadas, lendas, provérbios, diálogos e citações das mais
variadas procedências. É um livro em desordem – um livro que se
assemelha (que é) uma biblioteca. Daí sua beleza, que desnorteia,
mas inspira. Discretamente, nos corredores da biblioteca de Secchin,
tento encontrar (ler) algum vestígio de instabilidade ou de caos.
Nada encontro. Meu amigo transporta para as estantes a mesma postura
impecável e gentil que exibe como homem. Divide com sua biblioteca
um estilo.
Ando
atrapalhado com alguns verbetes que escrevo para um dicionário de
literatura. Quem sempre me salva, nas horas mais graves, é Secchin.
Digo isso para que fique claro que não desprezo, mas admiro, sua
obsessão cronológica. O que seria da desordem sem a ordem? Como
“ver” a desordem se não tivermos a ordem como padrão?
Em
Vestígios, lembra Machado, Bloch radicaliza sua estratégia
do “pensar fabulando”. Vem-me a figura do Quixote, o cavaleiro
andante, e eu a traduzo assim: “pensamento andante”. Fora da
grade dos conceitos, distante das fases da história, longe, muito
longe da ordem das escolas de pensamento, Bloch se atreve a pensar
através de peças secundárias, notas, historietas, lembranças –
dejetos. Pensa com o impensável.
Aspectos
como o gosto, a sensibilidade e a intuição se integram, assim, à
filosofia. A filosofia se torna uma experiência pessoal. Machado
recorda, a propósito, uma bela história contada por Bloch. Na velha
Nankin, um grupo de escritores se reúne para “comer minuciosamente
azeitonas”. Primeiro, elas são dispostas em um tordo. Então, o
tordo é colocado dentro de uma perdiz, esta dentro de um pato, este
dentro de um ganso, o ganso dentro de um peru, o peru dentro de um
leitão, este dentro de um carneiro, o carneiro dentro de uma vitela
e esta, finalmente, dentro de um boi. O boi é cozido lentamente. Por
fim, os assados são retirados uns de dentro dos outros, até que as
azeitonas ressurgem. Cada escritor tem, então, o direito de saborear
três azeitonas. É tudo o que um escritor (um leitor) consegue
digerir. Dois ou três livros.
Também
na biblioteca de Secchin, desprezo muitas iguarias, para ficar com
dois ou três livros preciosos. São minhas azeitonas, vestígios do
leitor precário que sou. Ao ler a coletânea dos pensadores alemães,
me defronto, do mesmo modo, com minhas insuficiências. Escolho o
ensaio sobre Bloch, chego a minhas azeitonas. Agora é esperar que o
correio me devolva o Vestígios que perdi para que eu possa,
enfim, celebrar minha escolha.
José
Castello, in sábados inquietos
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