sábado, 27 de outubro de 2018

Pensamento andante

Visito, em Copacabana, a biblioteca de Antonio Carlos Secchin. Fomos colegas de primário. Levei de presente uma cópia de nosso caderno de formatura, na Escola Dr. Cócio Barcellos – que ainda resiste em uma esquina da avenida Copacabana. Um vínculo antigo e vago (ralos vestígios) nos liga.
A biblioteca de Secchin é admirável. Mais do que as primeiras edições, os autógrafos célebres e os manuscritos originais, impressiono-me com a ordem severa que meu amigo lhes impõe. Rigorosa escala cronológica, ela se desenrola como uma viagem pela história da literatura brasileira.
Com sua mente de cientista, Secchin luta para ordenar e conter o que não se ordena nem se contém. A sombra de Borges, perfilada às minhas costas, me escolta pelos estreitos corredores. A literatura não cabe em um livro, tampouco em uma biblioteca. Livros e bibliotecas são esforços humanos insuficientes para ordenar o que não aceita qualquer ordem. A cronologia, que Secchin pratica com devoção, é insuficiente para dar conta da escrita.
Não é só em uma biblioteca fabulosa, como a de Secchin, que me vem esse sentimento. Um livro o produz também: por exemplo, Pensamento alemão no século XX, conjunto de ensaios organizado por Jorge de Almeida e Wolfgan Bader (Cosac Naify / Goethe Institut São Paulo). A reunião de onze ensaios, sobre Habermas, Adorno, Benjamin, Heidegger, me confronta, antes de tudo, com minhas insuficiências. Quanto mais leio, menos sei. Em vez de nos tornar mais sábios, a leitura nos dá a dimensão de nossa ignorância.
Penso na criança que, ao tentar agarrar uma pipa, só consegue reter alguns fios de papel. No astrônomo que, diante de seu telescópio, deseja devassar o cosmos, mas fica com o tênue rasto de uma estrela. No médico que, examinando um corpo doente, e mesmo de posse dos mais modernos instrumentos, se inquieta com o que não pode ver.
O mesmo espanto, eu imagino, sentiram intelectuais como Renato Mezan, Gabriel Cohn, Isabel Loureiro, Zeljko Loparic, diante dos pensadores que lhes coube retratar. Mesmo desassombro, ainda mais forte, que sinto enquanto avanço pelos corredores da biblioteca de Secchin. Quantos livros não li! Quantos jamais lerei! A visão do que me escapa me massacra.
Por mais que lutemos, ficamos só com vestígios do que tentamos reter. Como o astrônomo a quem resta a imagem de uma estrela morta ou o médico que esbarra em um vírus invisível, é preciso suportar essa limitação. A palavra apropriada para essa experiência me vem, justamente, de Vestígios, a coleção de pequenas narrativas que o filósofo alemão Ernst Bloch publicou em 1930, objeto de um dos mais belos ensaios do livro, assinado por Carlos Eduardo Jordão Machado.
Há alguns anos, em uma edição espanhola, ou francesa – pois não conheço o alemão –, eu o li. Percorro as estantes de minha biblioteca em busca do livro, não o encontro. Sempre tenho a impressão de que minha biblioteca engole livros. Vários dos livros que li e amei nela desapareceram para sempre. Talvez eu os tenha emprestado. Talvez eu os tenha perdido. Não sei bem. Para simplificar, prefiro crer que minha biblioteca é um pequeno monstro devorador.
Por mais que eu a ordene, jamais me aproximarei da perfeição que Secchin pratica. Admiro o esforço e a concentração de meu amigo, mas, na verdade, não sei se os quero para mim. Não sei viver sem uma boa dose de desordem, ou não me sinto vivo. Aí pago esse preço: saio em busca do livro de Bloch e não o encontro. Pela internet, já encomendei outro exemplar, mas ele só chegará em abril.
Lembra Machado que Vestígios é uma reunião desordenada de fábulas, contos de fadas, lendas, provérbios, diálogos e citações das mais variadas procedências. É um livro em desordem – um livro que se assemelha (que é) uma biblioteca. Daí sua beleza, que desnorteia, mas inspira. Discretamente, nos corredores da biblioteca de Secchin, tento encontrar (ler) algum vestígio de instabilidade ou de caos. Nada encontro. Meu amigo transporta para as estantes a mesma postura impecável e gentil que exibe como homem. Divide com sua biblioteca um estilo.
Ando atrapalhado com alguns verbetes que escrevo para um dicionário de literatura. Quem sempre me salva, nas horas mais graves, é Secchin. Digo isso para que fique claro que não desprezo, mas admiro, sua obsessão cronológica. O que seria da desordem sem a ordem? Como “ver” a desordem se não tivermos a ordem como padrão?
Em Vestígios, lembra Machado, Bloch radicaliza sua estratégia do “pensar fabulando”. Vem-me a figura do Quixote, o cavaleiro andante, e eu a traduzo assim: “pensamento andante”. Fora da grade dos conceitos, distante das fases da história, longe, muito longe da ordem das escolas de pensamento, Bloch se atreve a pensar através de peças secundárias, notas, historietas, lembranças – dejetos. Pensa com o impensável.
Aspectos como o gosto, a sensibilidade e a intuição se integram, assim, à filosofia. A filosofia se torna uma experiência pessoal. Machado recorda, a propósito, uma bela história contada por Bloch. Na velha Nankin, um grupo de escritores se reúne para “comer minuciosamente azeitonas”. Primeiro, elas são dispostas em um tordo. Então, o tordo é colocado dentro de uma perdiz, esta dentro de um pato, este dentro de um ganso, o ganso dentro de um peru, o peru dentro de um leitão, este dentro de um carneiro, o carneiro dentro de uma vitela e esta, finalmente, dentro de um boi. O boi é cozido lentamente. Por fim, os assados são retirados uns de dentro dos outros, até que as azeitonas ressurgem. Cada escritor tem, então, o direito de saborear três azeitonas. É tudo o que um escritor (um leitor) consegue digerir. Dois ou três livros.
Também na biblioteca de Secchin, desprezo muitas iguarias, para ficar com dois ou três livros preciosos. São minhas azeitonas, vestígios do leitor precário que sou. Ao ler a coletânea dos pensadores alemães, me defronto, do mesmo modo, com minhas insuficiências. Escolho o ensaio sobre Bloch, chego a minhas azeitonas. Agora é esperar que o correio me devolva o Vestígios que perdi para que eu possa, enfim, celebrar minha escolha.
José Castello, in sábados inquietos

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