Saí
dali a saborear o beijo. Não pude dormir; estirei-me na cama, é
certo, mas foi o mesmo que nada. Ouvi as horas todas da noite.
Usualmente, quando eu perdia o sono, o bater da pêndula fazia-me
muito mal; esse tique-taque soturno, vagaroso e seco, parecia dizer a
cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava então
um velho diabo, sentado entre dois sacos, o da vida e da morte, a
tirar as moedas da vida para dá-las à morte, e a contá-las assim:
-
Outra de menos...
-
Outra de menos...
-
Outra de menos...
-
Outra de menos...
O
mais singular é que, se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para
que ele não deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os
meus instantes perdidos. Invenções há, que se transformam ou
acabam; as mesmas instituições morrem; o relógio é definitivo e
perpétuo; o derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há
de ter um relógio na algibeira, para saber a hora exata em que
morre.
Naquela
noite não padeci essa triste sensação de enfado, mas outra, e
deleitosa. As fantasias tumultuavam-me cá dentro, vinham umas sobre
outras, à semelhança de devotas que se abalroam para ver o
anjo-cantor das procissões. Não ouvia os instantes perdidos, mas os
minutos ganhados; e de certo tempo em diante não ouvi coisa nenhuma,
porque o meu pensamento, ardiloso e traquinas, saltou pela janela
fora e bateu as asas na direção da casa de Virgília. Aí achou ao
peitoril de uma janela o pensamento de Virgília, saudaram-se e
ficaram de palestra. Nós a rolarmos na cama, talvez com frio,
necessitados de repouso, e os dois vadios ali postos, a repetirem o
velho diálogo de Adão e Eva.
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
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