quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Brit

Rumando a nordeste das ilhas Crozet enredamo-nos em vastas pradarias de brit, a minúscula, amarela substância de que a Baleia Franca fartamente se nutre. Por léguas e mais léguas, aquilo ondulou à nossa volta, de modo que parecíamos estar navegando através de ilimitados campos de trigo maduro e dourado.
No segundo dia, avistamos um grande número de Baleias Francas, as quais, a salvo de serem atacadas por um navio de pesca de Cachalotes como o Pequod, boquiabertas nadavam indolentemente através do brit, que, aderindo às bordas fibrosas das impressionantes venezianas que têm nas bocas, era assim separado da água que lhes escapava pelos lábios.
Como ceifeiros matutinos, que lado a lado avançam suas foices, lenta e tempestuosamente, através da relva sempre úmida das campinas alagadiças; assim também esses monstros nadavam, fazendo um som estranho, de capim, de corte; e deixando atrás de si um sem-fim de gavelas azuis no mar amarelo.
Mas era apenas o barulho que faziam ao atravessar o brit que lembrava a ceifa. Vistas dos topos dos mastros, especialmente quando faziam uma pausa e ficavam estáticas por algum tempo, suas imensas formas negras se pareciam mais com massas rochosas sem vida do que qualquer outra coisa. E, como nas regiões importantes de caça da Índia, o forasteiro nas planícies por vezes passa ao largo de elefantes em decúbito sem sabê-lo, tomando-os por elevações nuas e enegrecidas do solo; o mesmo sucede, muitas vezes, com aquele que pela primeira vez contempla esta espécie de Leviatãs do mar. E mesmo quando são, por fim, reconhecidos, sua imensa magnitude torna muito difícil acreditar que tais massas tão volumosas de gigantismo possam estar repletas em todas as suas partes do mesmo tipo de vida que vive num cão ou cavalo.
De fato, sob outros aspectos, mal se pode considerar qualquer criatura das profundezas com os mesmos sentimentos que se votam às da terra. Pois ainda que alguns velhos naturalistas tenham sustentado que todas as criaturas da terra possuem correspondentes entre as do mar; e ainda que de um ponto de vista geral isso possa ser verdade; contudo, chegando às particularidades, onde, por exemplo, o oceano apresenta algum peixe cuja disposição corresponde à bondade sagaz do cão? Apenas do amaldiçoado tubarão pode-se dizer que em termos genéricos guarde alguma analogia com ele.
Mas embora, para os homens da terra em geral, os habitantes nativos dos mares sempre tenham sido considerados com emoções indizivelmente anti-sociáveis e repulsivas; embora saibamos que o mar é uma eterna terra incognita, que Colombo navegou sobre inúmeros mundos desconhecidos para descobrir o seu único, superficial e ocidental; embora, com larga margem, os mais terríveis de todos os desastres mortais, imemorial e indiscriminadamente, tenham ocorrido a dezenas e centenas de milhares daqueles que se fizeram ao mar; embora um só momento de consideração nos ensinasse que, por mais que se vanglorie o homem infantil de sua ciência e capacidade, e por mais que num incensado futuro essa ciência e capacidade possam vir a crescer; no entanto, para todo o sempre, até o fim dos tempos, o mar o ofenderá e o assassinará, e pulverizará a mais imponente e sólida fragata que ele possa fazer; contudo, pela repetição contínua dessas mesmas impressões, o homem perdeu aquele senso do pleno temor do mar que originalmente ao mar pertence.
O primeiro barco de que lemos notícia flutuou num oceano que, em vingança digna de um Português, inundou um mundo inteiro sem nem deixar sequer uma viúva. Aquele mesmo oceano se agita agora; aquele mesmo oceano destruiu os navios naufragados do ano passado. Sim, mortais insensatos, o dilúvio de Noé ainda não cessou; dois terços do belo mundo ele ainda cobre.
Em que diferem o mar e a terra, que um milagre naquele não é um milagre nesta outra? Terrores preternaturais acometeram os Hebreus, quando sob os pés de Coré e seus companheiros o chão vivo se abriu e os engoliu para sempre; contudo nenhum sol moderno jamais se põe sem que, precisamente da mesma maneira, o mar vivo engula navios e tripulações.
Mas o mar não é esse adversário apenas do homem que o desconhece, mas é também inimigo de suas próprias crias; pior do que o anfitrião Persa que assassinou os seus convidados; não poupa as criaturas que ele mesmo desova. Como uma tigresa selvagem que abalada na selva esmaga os próprios filhotes, assim também o mar atira até mesmo as baleias mais poderosas contra os rochedos, e as deixa lado a lado com os vestígios dos naufrágios dos navios. Nem misericórdia, nem força nenhuma senão a do próprio mar o governa. Arquejando e resfolegando como um louco corcel de batalha que perdeu o seu cavaleiro, o oceano sem dono transborda o globo.
Considere a sutileza do mar; como as suas criaturas mais temidas deslizam sob as águas, invisíveis na maior parte, e traiçoeiramente ocultas sob os matizes mais encantadores do azul. Considere também o brilho e a beleza diabólica de muitas de suas tribos sem piedade, como a forma delicadamente adornada de muitas espécies de tubarões. Considere, uma vez mais, o canibalismo universal do mar; cujas criaturas todas se devoram umas às outras, continuando a guerra eterna desde o início do mundo.
Considere tudo isso; e então se volte para esta terra tão verde, suave e dócil; ambos considere, o mar e a terra; e você não acha que existe uma analogia estranha com algo dentro de você? Pois, tal como o oceano aterrador cerca a terra verdejante, também na alma do homem há um Taiti insular, cheio de paz e alegria, mas rodeado por todos os horrores da metade desconhecida da vida. Deus te proteja! Não te afastes dessa ilha, poderás não mais voltar!
Herman Melville, in Moby Dick

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