segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Longe que só a gota

Enquanto eu fiquei aqui a noite toda relembrando minha chegada que está por acontecer daqui a pouco, por volta do meio-dia, no meio da praça, Karina era só calada.
Cá, muito entre nós, desconfio que ela tenha, lá com ela, alguma sombra de medo de que eu não chegue, o que seria um fiasco, desta vez ainda pior do que o primeiro. Disse ela que não.
Disse também que estava ocupada demais, quando vieram lhe chamar pra festa, e mandou dizer que não ia, não, que não havia de sair de casa só pra presenciar minha chegada, ainda mais com um sol quente desses, e que se fosse parar seu serviço pra ficar vendo invenção minha, não faria outra coisa na vida.
Concluiu dizendo que não era o Antônio de antes que ela queria ver, mas o de agora, ficou olhando bem pra mim, assim, com esse seu olhar ao meio, me deu meia dúzia de beijos e foi lá pra dentro se desculpando que tinha mais o que fazer.
De vez em quando passa aqui na minha frente, assim como quem não quer nada, querendo, talvez, elogio. Queria eu que todo querer seu fosse fácil desse jeito.

Por aí não se fala de outra coisa, mais um pouco ele vai chegar e haja festa no meio do mundo pra receber Antônio.
Daqui até o outro lado da Terra há de se ouvir os pipocos dos fogos.
Está em cima da hora.
E como cada palavra é sempre a última palavra, antes da próxima, e as próximas palavras é o tempo que vai dizer daqui pra frente, eu, Antônio de dona Nazaré, de Karina, ou de Nordestina, vou ficando por aqui mesmo.
Mais não posso contar, em parte porque só sei contar até aqui, em parte porque tenho que ir ali sossegar o coração de Karina, já vai bater meio-dia e esse Antônio que não chega?
Calma, Karina.
É justo que chegue um pouco atrasado, pois lá de onde Antônio vem é longe que só a gota.
Adriana Falcão, in A máquina

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