Eu tinha deixado a cidade na agonia da
luz elétrica e noctivagava estrada em fora. Passei as águas verdes
e podres do velho açude, passei a padaria Mog e caminhei ainda.
Mas ao enfrentar a casa dos mortos,
branca na treva, tolheu-me os passos uma visão: era uma procissão
de almas que se iam, enchendo o caminho de espanto e de medo! Fiquei
branco com elas; as pernas tremiam-me como tenros galhos que o vento
açoitasse; os cabelos encrisparam-se-me. Estive quase a pedir
socorro! Mas ninguém me valeria, porque só almas me rodeavam...
Depois uma que me ficara perto falou:
— O senhor vota no governo, pois não
vota? Então vai fazer-me um grande favor. Fui eleitor também.
Votava na chapa oficial. Ora o senhor me vai levar um recado lá para
a rua. Está vendo? Depois que o portão caiu, os companheiros
deixaram-me só! Vão-se sem mais aquelas, sem licença de ninguém.
De tantos habitantes desta casa imensa, já poucos restam. Eu gosto
de cumprir ordens. Fui militar. Um dia, por uma simples infração,
mandaram-me ao xadrez, quinze dias, a pão e água! Depois deste
castigo, nunca mais desobedeci. Ninguém nos disse ainda que nós
podíamos ir; por isso continuo no meu posto. É certo que arrancaram
o portão, mas nada nos disseram... Vê o senhor? Aquilo ali faz dó!
Os cães invadem-nos os leitos, os porcos chafurdam tudo, as galinhas
nos martirizam remexendo a terra que nos cobre, à cata de alimentos.
É uma invasão danada! A vida aqui vai se tornando insuportável! Os
outros fogem apavorados! Parece até que me julgam alguma autoridade
aqui, porque saem às escondidas. Mas eu fico, todo cheio de
aflições. O senhor parece ter bom coração, porque está com os
olhos cheios d’água. Quando chegar à rua, vá ao palacete da
águia e faça-me o favor de dizer tudo isto ao governo e pedir-lhe
que mande um portão para cá. Do contrário isto ficará às moscas.
É certo que não fui pessoalmente à
intendência; mas creio que reproduzindo aqui, textualmente, as
palavras que ouvi à alma, satisfaço-lhe o pedido.
Graciliano Ramos, in Garranchos
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