domingo, 22 de julho de 2018

Capítulo 5 - O pai de Huck – O progenitor amoroso – Reforma

Eu tinha fechado a porta. Me virei, e ali tava ele. Eu sempre tive medo dele o tempo todo, ele me batia muito. Achei que também tava com medo agora, mas num minuto vi que tava enganado. Quer dizer, depois do primeiro solavanco, quando minha respiração meio que trancou – ele sendo tão inesperado; mas logo depois vi que não tava com medo, nada de preocupar.
Ele contava bem cinquenta anos e parecia ter essa idade. O cabelo era longo, emaranhado e gordurento, e caía no rosto, dava pra ver os olhos brilhando pelo meio dos fios, como se atrás de cipós. Era todo preto, nem um pouco grisalho, e as longas suíças emaranhadas também. Não tinha cor no rosto, nos lugares em que o rosto aparecia; era branco; não como o branco de um homem qualquer, mas um branco de corpo doente, um branco de fazer a carne do corpo formigar – um branco de perereca, um branco de barriga de peixe. E as roupas – só trapos. Ele tava com uma canela sobre o outro joelho; a bota nesse pé tava furada, e dois dos dedos saíam pra fora, e ele mexia os dedos de vez em quando. O chapéu tava no chão, um velho chapéu preto desabado com o topo afundado, como uma tampa.
Parei olhando pra ele; tava sentado ali olhando pra mim, com a cadeira um pouco inclinada pra trás. Botei a vela num lugar qualquer. Vi que a janela tava levantada, então ele tinha entrado subindo pelo telheiro. Ele continuava olhando pra mim por todos os lados. Daí a pouco disse:
Roupas engomada... muito. Ocê acha que é grande coisa, né ?
Talvez sim, talvez não – eu disse.
Num fala comigo desse jeito atrevido – disse ele. – Ocê tá com um ar muito besta desde que eu fui embora. Vô baixar a sua crista antes de acabar com ocê. Tá educado também, dizem, sabe ler e escrever. Acha que é melhor que o seu pai agora, né, porque ele não sabe? Vô acabar com isso. Quem disse que ocê podia se meter com essas bobagem, hein?... Quem disse que ocê podia?
A viúva. Ela falou.
A viúva, hein? ...E quem disse pra viúva que ela podia meter o nariz numa coisa que num é da conta dela?
Ninguém nunca disse nada pra ela.
Então vô ensinar a viúva a não se meter onde num é chamada. E olha aqui... ocê deixa essa escola, tá ouvindo? Vô ensinar as pessoa a fazer um menino olhar o próprio pai de cima, fingir que é melhor do que ele . Espera só eu pegar ocê vadiando perto dessa escola de novo, tá ouvindo? Tua mãe num sabia ler, e ela também num sabia escrever, antes de morrer. Ninguém da família sabia antes de morrer. Eu num sei, e agora vem ocê todo empinado desse jeito. Não sô homem de aguentar essas coisa... tá ouvindo? Diz uma coisa... quero ouvir ocê lendo.
Peguei um livro e comecei uma história sobre o general Washington e as guerras. Quando já tinha lido um meio minuto, ele pegou o livro num safanão e atirou o troço pela casa. Disse:
Então é assim. Ocê sabe ler. Tinha minhas dúvida quando ocê me disse. Agora olha aqui, ocê para de me olhar de cima. Não vô aguentar. Vô ficar à espreita, meu esperto, e se eu pegar ocê perto dessa escola, vou dar uma boa surra n’ocê. E ocê sabe que vai aprender religião também, nunca vi um filho assim.
Ele pegou um pequeno desenho azul e amarelo de umas vacas e um menino, e perguntou:
Que é isto?
É uma coisa que eles dão pra eu aprender bem as lições.
Ele rasgou o papel e disse:
Vô dar procê uma coisa melhor... vô dar uma relhada em ocê.
Ficou ali murmurando e resmungando um minuto, depois disse:
Mas não é que ocê virou mesmo um almofadinha todo perfumado? Uma cama, e roupa de cama, e um espelho, e um tapete no chão... e seu pai tendo de dormir com os porcos no curtume. Nunca vi um filho assim. Por certo, vô dar um sumiço nesse seu nariz empinado antes de acabar com ocê. Ora, não tem limite pra esse seu ar... dizem que ocê tá rico. Hein?... como é isso?
Mentira... é assim que é.
Olha aqui.. Vê como fala comigo, tô aguentando quase tudo que posso aguentar agora... nada de ser desbocado comigo. Tô na cidade faz dois dias e só tenho ouvido que ocê tá rico. Ouvi essa coisa também lá pra baixo do rio. É por isso que vim. Ocê me dá esse dinheiro amanhã... eu quero a grana.
Não tenho dinheiro.
Mentira. O juiz Thatcher tem o dinheiro. Ocê pega com ele. Eu quero a grana.
Não tenho dinheiro, tô falando. Pergunta pro juiz Thatcher, ele vai dizer o mesmo.
Tá bem. Vô perguntar e vô fazer ele dar o dinheiro também, ou então vô saber a razão. Diz... quanto ocê tem no bolso? Eu quero a grana.
Tenho só um dólar e quero ele pra...
Não faz diferença pra que ocê quer a grana... trata de passar pra mim.
Ele pegou a moeda e mordeu pra ver se era boa, depois disse que ia pra cidade comprar um pouco de uísque, disse que não tinha tomado nada o dia todo. Quando já tinha saído pelo telheiro, colocou a cabeça pra dentro de novo e me xingou por causa do meu nariz empinado e por tentar ser melhor que ele; e quando achei que ele já tava longe, voltou e colocou a cabeça pra dentro de novo, e disse pra eu tomar cuidado com a escola, porque ele ia ficar de olho e me bater, se eu não deixasse disso.
No dia seguinte ele tava bêbado e foi até a casa do juiz Thatcher e destratou o juiz, tentou forçar o juiz a entregar o dinheiro, mas não conseguiu, e então jurou que ia fazer a lei obrigar o juiz a dar o dinheiro pra ele.
O juiz e a viúva entraram com um pedido na justiça pro tribunal me afastar do meu pai e deixar um deles ser o meu tutor; mas era um juiz novo que recém tinha chegado, e ele não conhecia o velho; por isso, disse que os tribunais não deviam interferir e separar as famílias, se podiam evitar essas coisas; disse que preferia não afastar uma criança do seu pai. Então, o juiz Thatcher e a viúva tiveram que desistir do negócio.
Isso agradou o velho, até que ele não conseguiu mais ficar quieto. Disse que ia me dar uma surra de me deixar preto e azul se eu não arrumasse dinheiro pra ele. Tomei emprestados três dólares do juiz Thatcher, e papai pegou o dinheiro, ficou bêbado e saiu berrando por toda parte, xingando, gritando e fazendo escândalo; e continuou a fazer das suas por toda a cidade, com uma panela de lata, até quase a meia-noite; aí eles prenderam o papai e no dia seguinte levaram ele na justiça, e prenderam de novo por uma semana. Mas ele disse que ele tava satisfeito; disse que era o dono do seu filho e que ia mostrar pro filho com quantos paus se faz uma canoa.
Quando ele saiu da prisão, o novo juiz disse que ia fazer dele um homem. Levou o meu pai pra sua própria casa, vestiu o velho bem limpo e bonito, e mandou ele tomar o café da manhã, almoçar e jantar com a família, e tudo correu assim fácil pra ele, por assim dizer. Depois do jantar o juiz falou pra ele sobre temperança e todas essas coisas, até que o velho chorou e disse que tinha sido um tolo, tinha jogado fora a sua vida com tolices, mas agora ele ia virar uma nova página e ser um homem de quem ninguém ia ter vergonha, e esperava que o juiz ajudasse e não fizesse pouco caso dele. O juiz disse que podia dar um abraço nele por essas palavras; aí ele chorou, e a esposa do juiz ela também chorou; papai disse que sempre tinha sido um homem incompreendido, e o juiz disse que acreditava. O velho disse que tudo o que um homem na pior queria era compaixão; e o juiz falou que assim era; aí eles choraram de novo. E, quando chegou a hora de ir pra cama, o velho levantou e estendeu a mão dizendo:
Olha pra ela, cavalheiros e damas, todos; pega e aperta a minha mão. Foi a mão de um porco, mas num é mais assim; é a mão de um homem que começou uma nova vida, e eu morro antes do porco voltar. Presta atenção nas minhas palavras... num vão esquecer que eu disse essas coisa. A mão agora é limpa, pode apertar... sem medo.
Assim eles apertaram a mão, um depois do outro, todos ao redor, e choraram. A esposa do juiz ela beijou a mão. Então o velho ele assinou uma promessa... fez a sua marca. O juiz disse que era a hora mais santa já registrada, ou alguma coisa assim. Aí eles enfiaram o velho num belo quarto, que era o quarto de hóspedes, e em algum momento da noite ele sentiu muita sede, subiu no telhado da varanda, escorregou por um pilar e saiu, trocou o novo casaco por uma jarra de muitos litros, tornou a subir de novo e se divertiu bastante; perto do amanhecer se arrastou pra fora de novo, bêbado como um vagabundo, e caiu do telhado da varanda e quebrou o braço esquerdo em dois lugares, e tava quase morto congelado quando alguém encontrou ele depois que o sol apareceu. Quando eles foram olhar o quarto de hóspedes, tava tão bagunçado que tiveram de ir tateando para poder abrir caminho por ele.
O juiz ficou meio chateado. Disse que achava que alguém podia reformar o velho com uma pistola, talvez, mas que ele não conhecia nenhuma outra maneira.
Mark Twain, in As aventuras de Huckleberry Finn

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