domingo, 22 de julho de 2018

Beber sobejo

Quando alguém mais velho bebe líquido iniciado por gente moça, fica sabendo os segredos desta. Não ocorre semelhante se o moço bebe o sobejo do velho. Os segredos da velhice são intransmissíveis. O espírito do velho será mais lento pela densidade que os anos provocaram, mais difícil de comunicação inconsciente, mais vagaroso para deixar a concha mental. O espírito jovem é que é mais fluido, vigoroso, fácil no ímpeto comunicante.
O mistério do sobejo revelar os segredinhos é o preceito do totum ex parte, em que a parte está, mesmo dividida, idealmente unida ao todo de que pertenceu. Como os velhos têm maior coesão, força espiritual, capitalizada pela idade e experiência, a participação opera-se do mais moço para o mais antigo e não vice-versa.
O líquido traz um fragmento da vida interior do jovem, para a percepção anciã.
Nas recomendações da magia branca há uma fórmula para evitar a comunicação, pelos líquidos. É despejar fora um pouco, antes de beber. Interrompe a cadeia de ligação, perdendo-se um elo, inutilizado no chão. E o poder mágico sendo uma continuidade, uma sucessão de ondas invisíveis e penetrantes, a dispersão de uma, desequilibra a sequência regular das outras. Falta um elemento totalizante, indispensável para a formação do conjunto.
Nec quid nimis... Recordando Nicolau Tolentino nas “funções” familiares de Lisboa, quando reinava Dona Maria Primeira, Rainha Nossa Senhora:

Se o chichisbéu seu vizinho
Lhe vai afagando os dedos
Do terno, surdo pezinho,
Se por saber-lhe os segredos
Lhe bebe o resto do vinho…
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

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