sábado, 21 de julho de 2018

A ideia da virtude

O terceiro impulso psicológico contido na religião é aquele que levou à concepção da virtude. Estou ciente de que existem muitos livres-pensadores que tratam essa concepção com muito respeito e defendem que deve ser preservada, apesar da decadência da religião dogmática. Não posso concordar com eles nesse ponto. A análise psicológica da ideia de virtude me parece mostrar que ela está enraizada em paixões indesejáveis e não deve ser reforçada pelo imprimátur da razão. A virtude e a desvirtude devem ser tratadas em conjunto; é impossível dar ênfase a uma sem dar ênfase também à outra. Então, o que é a “desvirtude” na prática? É, na prática, um comportamento que o rebanho não gosta. Ao chamar isso de desvirtude, e ao providenciar um sistema elaborado de ética que gira em torno dessa concepção, o rebanho se justifica ao infligir castigos aos objetos de sua própria aversão, ao mesmo tempo em que, visto o rebanho ser virtuoso por definição, isso serve para reforçar sua própria autoestima, no exato momento em que libera seu impulso para a crueldade. Essa é a psicologia do linchamento e dos outros meios pelos quais os criminosos são castigados. A essência da concepção da virtude, portanto, é fornecer uma válvula de escape para o sadismo ao disfarçar a crueldade de justiça.
Mas, alguém dirá, o relato que o senhor faz da virtude é completamente inaplicável aos profetas hebreus, que, afinal de contas, de acordo com sua própria exposição, inventaram essa ideia. Existe verdade nisso: a virtude na boca dos profetas hebreus significava aquilo que era aprovado por eles e por Jeová. Encontra-se a mesma atitude expressa nos Atos dos Apóstolos, em que os apóstolos começavam um pronunciamento com as seguintes palavras: “Porque pareceu bem ao Espírito Santo e a nós” (Atos 15:28). Esse tipo de certeza individual em relação aos gostos e opiniões de Deus não pode, no entanto, ser transformado na base de qualquer instituição. Essa sempre foi a dificuldade com que o protestantismo teve de lidar: um novo profeta poderia defender que sua revelação era mais autêntica do que aquela de seus predecessores, e nada havia, na perspectiva geral do protestantismo, para mostrar que essa alegação era inválida. Em consequência, o protestantismo se dividiu em seitas inumeráveis, que enfraqueceram umas às outras – e não há razão para supor que daqui a cem anos o catolicismo será a única representação efetiva da fé cristã. Na Igreja Católica, inspiração como a de que os profetas gozavam tem o seu lugar; mas é fato reconhecido que fenômenos que parecem advir de genuína inspiração divina podem ter sido inspirados pelo demônio, e é dever da Igreja fazer essa diferenciação, assim como é dever do connoisseur de arte diferenciar um Leonardo legítimo de uma falsificação. Dessa maneira, a revelação se torna, ao mesmo tempo, institucionalizada. A virtude é aquilo que a Igreja aprova, e a desvirtude é o que ela desaprova. Assim, a parte efetiva da concepção da virtude é uma justificativa para a antipatia do rebanho.
Pareceria, portanto, que os três impulsos humanos que a religião contém são o medo, a vaidade e o ódio. O propósito da religião, pode-se dizer, é dar um ar de respeitabilidade a essas paixões, desde que elas se deem em canais específicos. Como essas paixões compreendem, de maneira geral, toda a desgraça humana, a religião é então uma força do mal, já que permite aos homens que se refestelem sem amarras nessas paixões, quando, se não fosse elas sancionadas pela Igreja, poderiam, pelo menos até certo grau, controlá-las.
Imagino que nesse ponto haja uma objeção, provavelmente não da parte dos crentes mais ortodoxos, mas que ainda assim vale a pena ser examinada. O ódio e o medo, pode-se dizer, são características essencialmente humanas; a humanidade sempre os sentiu e sempre os sentirá. O melhor que se pode fazer com esses sentimentos, pode-se afirmar, é direcioná-los a canais específicos em que sejam menos danosos do que seriam em outros canais. Um teólogo cristão pode afirmar que a maneira como a Igreja os trata é análoga ao tratamento que dispensa ao impulso sexual, que ela despreza. Ela tenta transformar a concupiscência em algo inócuo ao confiná-la às amarras do matrimônio. Então, pode-se dizer, se a humanidade precisa inevitavelmente sentir ódio, então é melhor direcionar esse ódio contra aqueles que realmente são prejudiciais, e é isso precisamente o que a Igreja faz por meio de sua concepção de virtude.
Há duas respostas a essa afirmação: uma relativamente superficial e outra que vai ao cerne da questão. A resposta superficial é que a concepção de virtude da Igreja não é a melhor possível; a resposta fundamental é que o ódio e o medo podem, com nosso atual conhecimento psicológico e nossa atual técnica industrial, ser eliminados completamente da vida humana.
Avaliemos inicialmente o primeiro ponto. A concepção de virtude da Igreja não é desejável socialmente sob vários aspectos: primeiro e sobretudo, por sua depreciação da inteligência e da ciência. Esse defeito foi herdado dos Evangelhos. Cristo nos diz para ser como crianças pequenas, mas crianças pequenas não entendem cálculo diferencial nem os princípios do câmbio, nem os métodos modernos de combate às doenças. Adquirir tal conhecimento não é parte da nossa função, de acordo com a Igreja. A Igreja já não defende que o conhecimento em si seja pecaminoso, apesar de o ter feito em épocas mais prósperas; mas a aquisição de conhecimento, apesar de não ser pecaminosa, é perigosa, já que pode levar ao orgulho do intelecto e, por conseguinte, ao questionamento do dogma cristão. Tomemos, por exemplo, dois homens, um dos quais erradicou a febre amarela de alguma região extensa dos trópicos, mas que, no decorrer de seu trabalho, manteve relações ocasionais com mulheres com as quais não era casado, ao passo que o outro foi sempre preguiçoso e folgado, produzindo um filho por ano até sua mulher morrer de exaustão e cuidando tão pouco dos filhos que metade deles morreu de causas que poderiam ter sido prevenidas, mas que nunca teve qualquer relação sexual ilícita. Todo bom cristão é obrigado a dizer que o segundo desses dois homens é mais virtuoso do que o primeiro. Tal atitude é, obviamente, supersticiosa e totalmente contrária à razão. E, no entanto, algo assim tão absurdo será inevitável desde que o ato de evitar o pecado seja considerado mais importante do que o mérito positivo e que a importância do conhecimento como forma de tornar a vida mais útil não seja reconhecida.
A segunda objeção, mais fundamental, ao uso do medo e do ódio, tal como é praticado pela Igreja, é que essas emoções agora podem ser quase totalmente eliminadas da natureza humana por meio de reformas educacionais, econômicas e políticas. As reformas educacionais devem ser a base, já que os homens que sentem ódio e medo também irão admirar essas emoções e desejarão perpetuá-las, apesar de essa admiração e esse desejo provavelmente serem inconscientes, como ocorre no caso do cristão comum. A educação planejada para eliminar o medo não é, de maneira alguma, difícil de criar. Basta tratar uma criança com gentileza, colocá-la em um ambiente em que a iniciativa seja possível sem resultados desastrosos, evitar que entre em contato com adultos que sintam terrores irracionais, sejam estes do escuro, de ratos ou da revolução social. A criança não deve ser sujeitada a castigos severos, ameaças ou críticas graves e excessivas. Livrar uma criança do ódio é algo um tanto mais complicado. Situações que possam suscitar inveja devem ser evitadas com muito cuidado, por meio da justiça escrupulosa e exata entre as crianças. A criança deve sentir-se objeto de afeto caloroso de ao menos parte dos adultos com quem tem relação, e não deve ser afastada de suas atividades e curiosidades naturais, a menos que nisso haja risco de vida ou saúde. Não deve existir, principalmente, qualquer tabu a respeito do conhecimento sexual, ou a respeito de assuntos que as pessoas convencionais avaliam como impróprios. Se esses preceitos simples forem observados desde o início, a criança será destemida e afável.
No entanto, ao entrar na vida adulta, um jovem assim educado ver-se-á mergulhado em um mundo cheio de injustiça, crueldade e tristeza evitáveis. A injustiça, a crueldade e a tristeza que existem no mundo moderno são herança do passado, e sua fonte primordial é econômica, já que a competição de vida ou morte pelos meios de sobrevivência no passado era inevitável. Na nossa época, não. Com a técnica industrial que temos hoje, poderemos, se assim desejarmos, fornecer subsistência tolerável para todos. Poderíamos também garantir que a população mundial ficasse estacionária, se não fôssemos impedidos pela influência política das igrejas, que preferem a guerra, a pestilência e a fome, aos métodos anticoncepcionais. O conhecimento por meio do qual a felicidade universal pode ser garantida existe; o principal obstáculo à sua utilização para tal fim são os ensinamentos religiosos. A religião impede que nossos filhos tenham uma educação racional; a religião nos impede de exterminar as causas fundamentais da guerra; a religião nos impede de ensinar a ética da cooperação científica, em lugar das antigas doutrinas aterradoras a respeito do pecado e do castigo. É possível que a humanidade esteja no limiar de uma idade de ouro, mas, se estiver, primeiro será necessário matar o dragão que vigia a porta – e esse dragão é a religião.
Bertrand Russell, in Por que não sou cristão

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