Estou ótima, me
sinto ótima depois da separação. Quando a gente se separa é que
percebe quanto deixamos de viver, oito anos aturando meu marido e a
mãe dele, os almoços de domingo eram encontros sagrados na casa da
minha ex-sogra, há homens que deviam viver com a mãe, eu não
aguentava mais ouvir as mesmas conversas, os mesmos elogios para ele,
o quinto filho, o caçula. Não há esposa que consiga ouvir essa
frase mil vezes:
“Preparei o
nhoque só para o meu filho, sei que ele adora meu nhoque e minha
torta de maçã.”
Como se os outros
filhos não existissem e, o que é pior, como se eu não existisse.
Então ficava calada, olhando as hortênsias murcharem no vaso,
querendo esganar o papagaio chatíssimo e falastrão, tinha vontade
de torcer o pescoço dele, depená-lo vivo, um bicho ridículo que
usava um colete com o escudo do Palmeiras; às vezes olhava de
relance para o rosto de cada filho desprezado pela mãe, só um deles
não era resignado, era tenso, talvez angustiado, e podia ser irônico
quando ouvia as mesmas histórias de sucesso que minha ex-sogra
contava, olhando para o filho querido:
“Como ele sabe
aplicar na bolsa, como ele é esperto e ousado.”
Muito esperto e
ousado: perdeu um dinheirão no ano passado, não recuperou nem a
metade, mas isso ele não revelou à mãe dele, inventava desculpas
esfarrapadas para justificar o desfalque, todo mundo falava da crise,
mas o esperto, o ousado dava de ombros e ria. Quando a bolsa
despencou, ele mal comia no almoço aos domingos, a mãe lhe oferecia
seus quitutes e ele:
“Estou sem fome,
mamãe…”
Ou:
“Tomei café
tarde, mamãe.”
E ela, a mamãe, me
olhava como se eu fosse uma doidivana, o irmão tenso e irônico me
olhava com desejo, nem respeitava a presença do meu ex-marido, na
despedida aos domingos esse cunhado beijava o canto dos meus lábios,
apertava meu braço, me encarava como um lobo. Quanta insinuação,
quanta torpeza… Mas o martírio dominical não parava por aí,
porque antes das cinco da tarde, quando chegávamos à nossa casa,
ele ligava a televisão para ver o Palmeiras jogar. Quando esse time
perdia, eu vibrava calada, me deliciava com a derrota do Verdão. Eu
murmurava: “Tomara que o São Paulo ganhe”; dizia baixinho:
“Vamos lá, Coringão”. Ou pensava: “Dá aquele show, Neymar,
mostra que o Santos é o time do Rei”. Mas quando esses times
ganhavam do Palmeiras, eu tinha que aturar um mau humor dos diabos,
uma solidão de astronauta, suportar uma indiferença cruel, nada de
beijos nem carícias, ele nem sabia que isso horroriza qualquer
mulher, minha ex-sogra devia ter dito ao filho:
“Nunca seja
indiferente à sua mulher, Diogo.”
Ou:
“Você não deve
deixar sua mulher jogada às traças, Dioguinho.”
Minha ex-sogra
jamais diria isso ao filho, ela criou um herói só para ela, o herói
dela, dava palpite até na roupa e no penteado do filho. Certa vez
ela disse:
“Corta o cabelo
no meu cabeleireiro, Diogo.”
Claro que ele foi
ao cabeleireiro da mamãe. Quase chorei quando o vi de corte novo,
parecia um travesti, parecia uma louca mais louca do que eu mesma,
meus cunhados sorriram, envergonhados, mas a mãe achou o filho
lindo:
“Como você está
charmoso, Diogo. Vem aqui, me dá um cheiro, filho.”
Meu ex-sogro não
dizia nada, parecia um urso triste, um urso balofo e melancólico,
com olhar desolado. Que homem bom, bondoso e molenga até demais, não
gosto de homem assim, sem nenhuma presença, nenhum gesto de
autoridade, o papagaio era mais vivo que o meu ex-sogro. Ainda bem
que me livrei de todos eles, agora moro sozinha, aos domingos saio
com minhas amigas, vamos ao teatro ou ao cinema, e quando elas
convidam uns amigos, a gente se diverte.
A separação me
fez bem, não tenho medo de ficar só, agora faço minhas coisas e
penso na minha vida, ouço a música que eu quero, posso ler no
horário do jogo, pouco importa se o Palmeiras perde, empata ou
ganha. Quer dizer, quando perde, penso que o idiota está sofrendo.
Às vezes observo
um casal e pergunto a mim mesma: será que esses dois são felizes?
Será que uma mulher fazia a mesma pergunta quando me observava ao
lado do meu ex-marido?
Milton Hatoum,
in Um solitário à espreita
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