sábado, 21 de julho de 2018

Quer saber como estou?

Estou ótima, me sinto ótima depois da separação. Quando a gente se separa é que percebe quanto deixamos de viver, oito anos aturando meu marido e a mãe dele, os almoços de domingo eram encontros sagrados na casa da minha ex-sogra, há homens que deviam viver com a mãe, eu não aguentava mais ouvir as mesmas conversas, os mesmos elogios para ele, o quinto filho, o caçula. Não há esposa que consiga ouvir essa frase mil vezes:
Preparei o nhoque só para o meu filho, sei que ele adora meu nhoque e minha torta de maçã.”
Como se os outros filhos não existissem e, o que é pior, como se eu não existisse. Então ficava calada, olhando as hortênsias murcharem no vaso, querendo esganar o papagaio chatíssimo e falastrão, tinha vontade de torcer o pescoço dele, depená-lo vivo, um bicho ridículo que usava um colete com o escudo do Palmeiras; às vezes olhava de relance para o rosto de cada filho desprezado pela mãe, só um deles não era resignado, era tenso, talvez angustiado, e podia ser irônico quando ouvia as mesmas histórias de sucesso que minha ex-sogra contava, olhando para o filho querido:
Como ele sabe aplicar na bolsa, como ele é esperto e ousado.”
Muito esperto e ousado: perdeu um dinheirão no ano passado, não recuperou nem a metade, mas isso ele não revelou à mãe dele, inventava desculpas esfarrapadas para justificar o desfalque, todo mundo falava da crise, mas o esperto, o ousado dava de ombros e ria. Quando a bolsa despencou, ele mal comia no almoço aos domingos, a mãe lhe oferecia seus quitutes e ele:
Estou sem fome, mamãe…”
Ou:
Tomei café tarde, mamãe.”
E ela, a mamãe, me olhava como se eu fosse uma doidivana, o irmão tenso e irônico me olhava com desejo, nem respeitava a presença do meu ex-marido, na despedida aos domingos esse cunhado beijava o canto dos meus lábios, apertava meu braço, me encarava como um lobo. Quanta insinuação, quanta torpeza… Mas o martírio dominical não parava por aí, porque antes das cinco da tarde, quando chegávamos à nossa casa, ele ligava a televisão para ver o Palmeiras jogar. Quando esse time perdia, eu vibrava calada, me deliciava com a derrota do Verdão. Eu murmurava: “Tomara que o São Paulo ganhe”; dizia baixinho: “Vamos lá, Coringão”. Ou pensava: “Dá aquele show, Neymar, mostra que o Santos é o time do Rei”. Mas quando esses times ganhavam do Palmeiras, eu tinha que aturar um mau humor dos diabos, uma solidão de astronauta, suportar uma indiferença cruel, nada de beijos nem carícias, ele nem sabia que isso horroriza qualquer mulher, minha ex-sogra devia ter dito ao filho:
Nunca seja indiferente à sua mulher, Diogo.”
Ou:
Você não deve deixar sua mulher jogada às traças, Dioguinho.”
Minha ex-sogra jamais diria isso ao filho, ela criou um herói só para ela, o herói dela, dava palpite até na roupa e no penteado do filho. Certa vez ela disse:
Corta o cabelo no meu cabeleireiro, Diogo.”
Claro que ele foi ao cabeleireiro da mamãe. Quase chorei quando o vi de corte novo, parecia um travesti, parecia uma louca mais louca do que eu mesma, meus cunhados sorriram, envergonhados, mas a mãe achou o filho lindo:
Como você está charmoso, Diogo. Vem aqui, me dá um cheiro, filho.”
Meu ex-sogro não dizia nada, parecia um urso triste, um urso balofo e melancólico, com olhar desolado. Que homem bom, bondoso e molenga até demais, não gosto de homem assim, sem nenhuma presença, nenhum gesto de autoridade, o papagaio era mais vivo que o meu ex-sogro. Ainda bem que me livrei de todos eles, agora moro sozinha, aos domingos saio com minhas amigas, vamos ao teatro ou ao cinema, e quando elas convidam uns amigos, a gente se diverte.
A separação me fez bem, não tenho medo de ficar só, agora faço minhas coisas e penso na minha vida, ouço a música que eu quero, posso ler no horário do jogo, pouco importa se o Palmeiras perde, empata ou ganha. Quer dizer, quando perde, penso que o idiota está sofrendo.
Às vezes observo um casal e pergunto a mim mesma: será que esses dois são felizes? Será que uma mulher fazia a mesma pergunta quando me observava ao lado do meu ex-marido?
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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