segunda-feira, 11 de junho de 2018

Viajantes e apaixonados em transe

Bem aventurados os apaixonados, que se esquecem por algum tempo das mazelas do mundo. Deitam-se numa rede de fios bem trançados, numa cama estreita, num tapete persa ou numa esteira de palha e se entregam às malícias do amor. Ou deitam-se no piso de tábuas de uma casa modesta e se esquecem dos magistrados, dos burocratas, das chuvas destruidoras, dos políticos inativos, dos impostores e dos pássaros agourentos. Já não se lembram da segunda-feira árdua e rotineira, do chefe ranzinza ou do subalterno distraído, do trânsito nefasto com seus motoristas alucinados, nem daquele casamento que se reduziu a bocas engessadas e momentos de silêncio que insinuam sentenças hostis.
Apaixonados: seres sonhadores antes do primeiro duelo, que só às vezes rima com inverno. Ali na praça conversei com Bandolim, um velho conhecido que perdera sua amada. Nas vésperas do Natal eu o encontrava triste e lacônico, vendendo violas que ele mesmo fazia com dejetos fisgados na metrópole, esse vasto museu do consumo. Mas agora Bandolim havia encontrado uma amada:
Minha outra música”, ele disse.
Distraído, ouvi “musa” em vez de “música”, e logo comprei uma viola do artista errante, que lembra certos viajantes, esses outros bem-aventurados.
Muitos partem sem bússola e se lançam a uma aventura. Ou partem em busca de uma paisagem insólita, de um sabor estranho, de rostos ainda mais estranhos, de lugares sonhados desde sempre, de noites que se emendam ao dia e novamente à noite, como se houvesse só espaço nesse mundo regido pelo tempo. Viajantes com pouca bagagem, movidos pelo desejo de conhecer o que amanhã será esquecido, ou de esquecer o que irremediavelmente será lembrado além da nossa fronteira. Alguém te envia uma mensagem do deserto de Atacama, de uma mesquita de Istambul, de um pueblo de Missiones, de uma praça de Teresina, Belém ou Sabará, do pátio de um convento de Olinda; alguém escreve à mão no verso de um postal palavras sobre o assombro e a beleza da ilha de Creta, onde um mito antigo resiste aos descalabros do nosso tempo.
Quantas mensagens via satélite… E só uns poucos postais com a fotografia de um lugar visitado e cinco frases escritas por calígrafos anacrônicos.
Invejo a energia quase cósmica desses viajantes e apaixonados, que celebram suas façanhas com uma comoção incomum. Posso imaginá-los em transe, e de algum modo eles me inspiram para escrever essas linhas num quarto úmido, depois da tempestade. Ali, no pequeno jardim, olho as romãs rosadas, sinto o cheiro dessas frutas desventradas por pássaros famintos, e logo me vem à mente os versos do poeta que escreveu “A falta que ama”: 
 
Uma viagem é imóvel, sem rigidez.
Invisível, preside
ao primeiro encontro. Todo encontro,
escala que se ignora.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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