domingo, 17 de junho de 2018

Das cátedras da virtude

Louvaram para Zaratustra um sábio que falaria muito bem do sono e da virtude: por isso era bastante reverenciado e recompensado, diziam, e todos os jovens se sentavam perante sua cátedra. Foi até ele Zaratustra, e com todos os jovens se sentou perante sua cátedra. E assim falou o sábio:
Respeito e pudor ante o sono! Isso em primeiro lugar! E evitar todos os que dormem mal e passam a noite acordados!
Mesmo o ladrão tem pudor diante do sono: sempre anda furtivamente pela noite. Sem pudor, no entanto, é o guarda-noturno, que despudoradamente carrega sua corneta.
Não é arte pequena dormir: requer passar o dia inteiro acordado.
Dez vezes é preciso superar-se durante o dia: isso gera um bom cansaço e é papoula para a alma.
Dez vezes é preciso reconciliar-te contigo mesmo; pois superação é amargura, e dorme mal o não reconciliado.
Dez verdades tens de achar durante o dia: senão buscas ainda verdades durante a noite, tua alma permaneceu faminta.
Dez vezes tens de rir e ser jovial durante o dia: senão és incomodado à noite pelo estômago, esse pai das aflições.
Poucos o sabem, mas é preciso ter todas as virtudes para dormir bem. Darei falso testemunho? Cometerei adultério?
Cobiçarei a criada do meu próximo? Tudo isso combinaria mal com o bom sono.
E, mesmo possuindo todas as virtudes, deve-se ainda saber uma coisa: mandar dormir também as virtudes no momento certo.
Para que não briguem umas com as outras, essas graciosas mulherezinhas! Por tua causa, infeliz!
Paz com Deus e com o vizinho: assim pede o bom sono. E paz até mesmo com o demônio do vizinho! Senão rondará tua casa durante a noite.
Respeito e obediência à autoridade, mesmo à autoridade torta! Assim pede o bom sono. Que fazer, se o poder gosta de caminhar sobre pernas tortas?
Sempre será o melhor pastor, para mim, aquele que leva suas ovelhas ao prado mais verde: isso condiz com o bom sono.
Muitas honras não desejo, nem grandes tesouros: isso inflama o baço. Mas dorme-se mal sem um bom nome e um pequeno tesouro.
Uma companhia escassa me é mais bem-vinda que uma má: mas tem de ir e vir no momento certo. Isso condiz com o bom sono.
Também muito me agradam os pobres de espírito: eles promovem o sono. Bem-aventurados são eles, sobretudo quando sempre lhes damos razão.
Assim transcorre o dia para o virtuoso. E, quando vem a noite, eu bem me guardo de chamar o sono! Pois o sono, que é o senhor das virtudes, não quer ser chamado!
Em vez disso, penso no que fiz e pensei durante o dia. Ruminando me pergunto, paciente como uma vaca: quais foram, afinal, tuas dez superações?
E quais foram as dez conciliações e as dez verdades, e as dez risadas com que se regalou meu coração?
Isso refletindo, e acalentado por quarenta pensamentos, assalta-me de repente o sono, o não chamado, o senhor das virtudes.
O sono bate em meus olhos: eles ficam pesados. O sono toca em minha boca: ela fica aberta.
Em verdade, com solas macias ele chega até mim, meu predileto entre os ladrões, e me rouba os pensamentos: e lá fico eu em pé, estúpido como essa cátedra.
Mas já não fico em pé por muito tempo: logo estou deitado.—
Quando Zaratustra ouviu assim falar o sábio, riu-se no coração: pois uma luz raiara nele. E assim falou ele para seu coração:
Um tolo me parece este sábio, com seus quarenta pensamentos: mas creio que ele entende de dormir.
Feliz aquele que mora na vizinhança deste sábio! Um sono como esse contagia, mesmo através de uma grossa parede contagia.
Mesmo em sua cátedra habita um encanto. E não foi em vão que os jovens sentaram perante o pregador da virtude.
Sua verdade diz: ficar desperto para bem dormir. E, em verdade, se a vida carecesse de sentido e eu tivesse de escolher o sem-sentido, também para mim este seria o sem-sentido mais digno de escolha.
Agora vejo claramente o que antes buscavam as pessoas, ao buscar professores da virtude. Buscavam o bom sono, e virtudes opiáceas para ele!
Para todos esses louvados sábios de cátedras, a sabedoria era o sono sem sonhos: eles não conheciam sentido melhor para a vida.
Ainda hoje existem alguns como esse pregador da virtude, e nem sempre honestos: mas seu tempo acabou. E já não ficam em pé por muito tempo: logo estão deitados.
Bem-aventurados são esses que têm sono: pois em breve adormecerão. —
Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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