A
maioria das pessoas não percebe o quão pacífica é a era em que
vivemos. Nenhum de nós estava vivo há mil anos, e por isso nos
esquecemos facilmente de que o mundo costumava ser muito mais
violento. E, à medida que as guerras se tornaram mais raras, elas
passaram a atrair mais atenção. Muito mais pessoas pensam nas
guerras se alastrando hoje no Afeganistão e no Iraque do que na paz
em que vivem a maioria dos canadenses e indianos.
O
que é ainda mais importante, podemos nos relacionar mais facilmente
com o sofrimento de indivíduos do que de populações inteiras. No
entanto, para entender processos macro-históricos, precisamos
examinar estatísticas de grandes grupos, e não histórias
individuais. No ano 2000, guerras causaram a morte de 310 mil
indivíduos, e crimes violentos mataram outros 520 mil. Cada uma das
vítimas é um mundo destruído, uma família arruinada, amigos e
parentes com cicatrizes para a vida toda. Mas, de uma perspectiva
macro, essas 830 mil vítimas representam apenas 1,5% dos 56 milhões
de pessoas que morreram em 2000. Naquele ano, 1,26 milhão de pessoas
morreram em acidentes de carro (2,25% do total de mortes) e 815 mil
pessoas cometeram suicídio (1,45%).
Os
números para 2002 são ainda mais surpreendentes. Dos 57 milhões de
mortos, apenas 172 mil pessoas morreram em guerra e 569 mil morreram
de crimes violentos (um total de 741 mil vítimas de violência
humana). Por outro lado, 873 mil pessoas cometeram suicídio.
Acontece que no ano que se seguiu aos ataques do Onze de Setembro,
apesar do muito que se falou em terrorismo e guerra, um cidadão
médio tinha mais probabilidade de se matar do que de ser morto por
um terrorista, um soldado ou um traficante de drogas.
Na
maior parte do mundo, as pessoas vão dormir sem medo de que no meio
da noite uma tribo vizinha cerque sua aldeia e mate a todos. Súditos
britânicos abastados viajam diariamente de Nottingham a Londres pela
floresta de Sherwood sem temer que uma gangue de bandoleiros alegres
vestidos de verde lhes preparem uma emboscada e roubem seu dinheiro
para dar aos pobres (ou, o que seria mais provável, matem-nos e
peguem o dinheiro para si). Os estudantes não toleram ser fustigados
por seus professores, as crianças não precisam temer ser vendidas
como escravas quando seus pais não conseguem pagar as contas, e as
mulheres sabem que a lei proíbe o marido de espancá-las e forçá-las
a ficar em casa. Cada vez mais, no mundo inteiro, essas expectativas
se cumprem.
A
diminuição da violência se deve, em grande parte, à ascensão do
Estado. Em toda a história, a maior parte da violência resultava de
rixas locais entre famílias e comunidades. (Mesmo hoje, como indicam
os números expostos aqui, o crime local é uma ameaça muito mais
letal do que as guerras internacionais.) Conforme vimos, os primeiros
agricultores, que não conheciam nenhuma organização política
maior do que a comunidade local, sofriam violência extrema. À
medida que reinos e impérios ficaram mais fortes, eles controlaram
as comunidades e o nível de violência diminuiu. Nos reinos
descentralizados da Europa medieval, cerca de 20 a 40 pessoas eram
assassinadas todos os anos para cada 100 mil habitantes. Nas últimas
décadas, quando os Estados e os mercados se tornaram todo-poderosos
e as comunidades desapareceram, os índices de violência caíram
ainda mais. Hoje, a média global é de apenas 9 assassinatos por ano
para cada 100 mil pessoas, e a maioria desses assassinatos acontece
em Estados débeis como a Somália e a Colômbia. Nos Estados
centralizados da Europa, a média é um assassinato por ano para cada
100 mil pessoas.
Certamente,
há casos em que os Estados usam seu poder para matar seus próprios
cidadãos, e tais casos assombram nossas memórias e medos. Durante o
século XX, dezenas de milhões, se não centenas de milhões, de
pessoas foram mortas por forças de segurança de seus próprios
Estados. Ainda assim, de uma macroperspectiva, cortes de justiça e
forças policiais do Estado provavelmente aumentaram o nível de
segurança em todo o mundo. Mesmo em ditaduras opressivas, o cidadão
médio moderno tem muito menos probabilidade de morrer pela mão de
outra pessoa do que nas sociedades pré-modernas. Em 1964, uma
ditadura militar foi instalada no Brasil. Governou o país até 1985.
Durante esses 20 anos, várias centenas de brasileiros foram
assassinados pelo regime. Outros milhares foram presos e torturados.
Ainda assim, mesmo nos piores anos, o brasileiro médio no Rio de
Janeiro tinha muito menos probabilidade de morrer por mãos humanas
do que o ianomâmi médio. Os ianomâmis são uma sociedade agrícola
de pequenas aldeias dispersas nas profundezas da floresta amazônica,
sem exército, polícia ou prisões. Estudos antropológicos
indicaram que de um quarto a metade dos ianomâmis acaba morrendo em
conflitos violentos por propriedades, mulheres ou prestígio.
Yuval
Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade
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