terça-feira, 1 de maio de 2018

Paz em nossa era

A maioria das pessoas não percebe o quão pacífica é a era em que vivemos. Nenhum de nós estava vivo há mil anos, e por isso nos esquecemos facilmente de que o mundo costumava ser muito mais violento. E, à medida que as guerras se tornaram mais raras, elas passaram a atrair mais atenção. Muito mais pessoas pensam nas guerras se alastrando hoje no Afeganistão e no Iraque do que na paz em que vivem a maioria dos canadenses e indianos.
O que é ainda mais importante, podemos nos relacionar mais facilmente com o sofrimento de indivíduos do que de populações inteiras. No entanto, para entender processos macro-históricos, precisamos examinar estatísticas de grandes grupos, e não histórias individuais. No ano 2000, guerras causaram a morte de 310 mil indivíduos, e crimes violentos mataram outros 520 mil. Cada uma das vítimas é um mundo destruído, uma família arruinada, amigos e parentes com cicatrizes para a vida toda. Mas, de uma perspectiva macro, essas 830 mil vítimas representam apenas 1,5% dos 56 milhões de pessoas que morreram em 2000. Naquele ano, 1,26 milhão de pessoas morreram em acidentes de carro (2,25% do total de mortes) e 815 mil pessoas cometeram suicídio (1,45%).
Os números para 2002 são ainda mais surpreendentes. Dos 57 milhões de mortos, apenas 172 mil pessoas morreram em guerra e 569 mil morreram de crimes violentos (um total de 741 mil vítimas de violência humana). Por outro lado, 873 mil pessoas cometeram suicídio. Acontece que no ano que se seguiu aos ataques do Onze de Setembro, apesar do muito que se falou em terrorismo e guerra, um cidadão médio tinha mais probabilidade de se matar do que de ser morto por um terrorista, um soldado ou um traficante de drogas.
Na maior parte do mundo, as pessoas vão dormir sem medo de que no meio da noite uma tribo vizinha cerque sua aldeia e mate a todos. Súditos britânicos abastados viajam diariamente de Nottingham a Londres pela floresta de Sherwood sem temer que uma gangue de bandoleiros alegres vestidos de verde lhes preparem uma emboscada e roubem seu dinheiro para dar aos pobres (ou, o que seria mais provável, matem-nos e peguem o dinheiro para si). Os estudantes não toleram ser fustigados por seus professores, as crianças não precisam temer ser vendidas como escravas quando seus pais não conseguem pagar as contas, e as mulheres sabem que a lei proíbe o marido de espancá-las e forçá-las a ficar em casa. Cada vez mais, no mundo inteiro, essas expectativas se cumprem.
A diminuição da violência se deve, em grande parte, à ascensão do Estado. Em toda a história, a maior parte da violência resultava de rixas locais entre famílias e comunidades. (Mesmo hoje, como indicam os números expostos aqui, o crime local é uma ameaça muito mais letal do que as guerras internacionais.) Conforme vimos, os primeiros agricultores, que não conheciam nenhuma organização política maior do que a comunidade local, sofriam violência extrema. À medida que reinos e impérios ficaram mais fortes, eles controlaram as comunidades e o nível de violência diminuiu. Nos reinos descentralizados da Europa medieval, cerca de 20 a 40 pessoas eram assassinadas todos os anos para cada 100 mil habitantes. Nas últimas décadas, quando os Estados e os mercados se tornaram todo-poderosos e as comunidades desapareceram, os índices de violência caíram ainda mais. Hoje, a média global é de apenas 9 assassinatos por ano para cada 100 mil pessoas, e a maioria desses assassinatos acontece em Estados débeis como a Somália e a Colômbia. Nos Estados centralizados da Europa, a média é um assassinato por ano para cada 100 mil pessoas.
Certamente, há casos em que os Estados usam seu poder para matar seus próprios cidadãos, e tais casos assombram nossas memórias e medos. Durante o século XX, dezenas de milhões, se não centenas de milhões, de pessoas foram mortas por forças de segurança de seus próprios Estados. Ainda assim, de uma macroperspectiva, cortes de justiça e forças policiais do Estado provavelmente aumentaram o nível de segurança em todo o mundo. Mesmo em ditaduras opressivas, o cidadão médio moderno tem muito menos probabilidade de morrer pela mão de outra pessoa do que nas sociedades pré-modernas. Em 1964, uma ditadura militar foi instalada no Brasil. Governou o país até 1985. Durante esses 20 anos, várias centenas de brasileiros foram assassinados pelo regime. Outros milhares foram presos e torturados. Ainda assim, mesmo nos piores anos, o brasileiro médio no Rio de Janeiro tinha muito menos probabilidade de morrer por mãos humanas do que o ianomâmi médio. Os ianomâmis são uma sociedade agrícola de pequenas aldeias dispersas nas profundezas da floresta amazônica, sem exército, polícia ou prisões. Estudos antropológicos indicaram que de um quarto a metade dos ianomâmis acaba morrendo em conflitos violentos por propriedades, mulheres ou prestígio.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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