César Franck (1822-1890)
Dizem
que a razão por que se embalam as criancinhas em ritmo binário é
porque, durante nove meses, ouvimos a pulsação binária do coração
da mãe. O ritmo binário do coração da mãe se inscreve no corpo
da criancinha como uma memória tranquilizadora. Se isso é verdade,
tem de ser verdade também que a música ouvida em tempos anteriores
à memória consciente, no sono fetal, torna-se parte da nossa carne.
Comecei
a ouvir música antes de nascer. Minha mãe era pianista e tocava. A
música clássica é parte da minha carne.
Não
é meu costume ouvir música enquanto escrevo. Fico possuído pela
música, numa espécie de êxtase, e isso faz parar meus pensamentos.
Contrariando o meu hábito coloquei no micro um CD de uma peça que
nunca ouvira, sonata para violino e piano de César Franck. Minutos
depois, eu estava chorando. Aí interrompi o choro e fiz um exercício
filosófico. Perguntei-me: “Por que é que você está chorando?”.
A resposta veio fácil: “É por causa da beleza...”. Continuei:
“Mas o que é a experiência da beleza?”. Sem uma resposta
pronta, veio-me algo que aprendi com Platão. Platão, quando não
conseguia dar respostas racionais, inventava mitos. Ele contou que,
antes de nascer, a alma contempla todas as coisas belas do universo.
Essa experiência foi tão forte que todas as infinitas formas de
beleza do universo ficam eternamente gravadas na alma. Ao nascer, nos
esquecemos delas. Mas não as perdemos. A beleza fica em nós,
adormecida como um feto. Todos estamos grávidos de beleza, beleza
que quer nascer para o mundo qual uma criança. Quando a beleza
nasce, reencontramo-nos com nós mesmos e experimentamos a alegria.
Agora
vem a minha contribuição. Continuo o mito. Há seres privilegiados
— eles bem que poderiam ser chamados de anjos —, aos quais é
dado acesso a esse mundo espiritual de beleza. Eles veem e ouvem
aquilo que nós nem vemos nem ouvimos. E transformam então o que
viram e ouviram em objetos belos que o corpo pode ver e ouvir. É
assim que nasce a arte. Ao ouvir uma música que me comove por sua
beleza, eu me reencontro com a mesma beleza que estava adormecida
dentro de mim.
“Quando
te vi amei-te já muito antes. Tornei a encontrar-te quando te
achei.” Essa é a mais bela declaração de amor que conheço,
escrita pelo anjo Fernando Pessoa. Tu já estavas dentro de mim antes
que te encontrasse. O nosso encontro não foi encontro; foi
reencontro... Isso que o poeta diz para um homem ou uma mulher pode
ser dito também para uma música: “Quando te ouvi, ouvi-te já
muito antes. Tornei a ouvir-te quando te ouvi...”.
O
que me comoveu, então, não foi a música de César Franck. Foi a
sonata que estava adormecida dentro de mim e que a sonata de César
Franck fez acordar. Ao me comover com a beleza da música, eu me
reencontro com a minha própria beleza. Por isso a música me traz
felicidade…
Rubem
Alves,
in Pimentas:
para provocar um incêndio, não é preciso fogo
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