terça-feira, 29 de maio de 2018

Ofereço minha vida, serve?

Ilustração: Fernando Vilela

Uma vez que nunca tinha pedido sequer um favor pro tempo, por não ser coisa de Antônio ficar se aproveitando de ninguém por amizade, estava claro que o tempo não ia lhe negar ajuda justo em hora tão necessitada.
Por isso, resolveu chamar a atenção do mundo com a espetacular atração do sujeito que podia ir ao futuro, e dessa maneira levar o mundo pra Nordestina assim mesmo, do jeito que o mundo estava. Quando voltasse do futuro, aí, sim, ia poder consertar o mundo que tinha dado a Karina de presente, pois, além da vontade, teria o conhecimento, a técnica e a prática.
Ia dar certinho.
O mundo ia se agradar de um sujeito que viajasse no tempo e Karina ia se agradar do presente que tinha ganhado.
O único problema era sua falta de experiência no assunto, mas pra tudo tem que ter uma primeira vez, e então Antônio resolveu que era aquilo o que ele faria, não tinha o menor motivo pra não ser, não havia como dar pra trás, era aquilo mesmo, inclusive porque outra coisa não era, estava decidido, e decisão decidida em véspera de dia 13 tem o voto dos anjos e ponto, parágrafo.
Depois de dar umas voltas pelo mundo foi diretamente pra emissora de televisão.
A fila de candidatos pra aparecer na TV rodava o quarteirão e a cabeça de Antônio pensava.
O quarteirão era do tamanho de Nordestina e a cabeça de Antônio pensava.
Anoiteceu, amanheceu, anoiteceu, amanheceu e a cabeça de Antônio pensava.
A mulher 853 da fila tinha oito ovos com casca, todos oito dentro do bucho, mesmo sem ser bicho que põe ovo. A moça 1.115 e a 1.116 se estranhavam disputando um só marido. Uma olhava de banda e coiceava tal qual bicho. A outra desafiava. Uma ameaçava ir, não ia, e a outra dava meia-volta, cismada. O rapaz 510 desengolia relógios que nunca tinha engolido, todos eles marcando hora exata, por isso achava que ia ser o escolhido. Aconteceu que quando chegou a vez de Antônio, o homem lá da televisão ficou numa dúvida danada.
Eu, Antônio de dona Nazaré, dou minha palavra que vou pra outro tempo, mais precisamente pro futuro. Mas não só vou ao futuro por ir, fui e pronto, não. A minha ida há de ser proveitosa, pois vou a negócios.”
O cidadão que viajava no tempo prometia ser um grande espetáculo.
E quem podia garantir que Antônio ia ao futuro mesmo?
A única garantia que podia oferecer era sua palavra.
É pouco”, o homem lá da televisão falou, “vai que na hora agá, tudo pronto, todo mundo esperando pra ver, e o negócio dá errado? É melhor não arriscar”, e foi logo chamando o número do próximo.
Espere”, Antônio gritou, “se minha palavra é garantia pouca ofereço então minha vida, serve?” E o homem lá da televisão se mostrou interessado.

Eu, Antônio de dona Nazaré, dou minha palavra que vou pra outro tempo, mais precisamente pro futuro, com a finalidade de melhorar o mundo que vou dar de presente a Karina. Partirei de hoje a oito dias, saindo do meio da praça de Nordestina, porém voltarei logo. E, se acaso o negócio der errado e eu não cumprir minha promessa, então não me interessa mais viver e aí dou minha palavra que morro. Mas não vou morrer só assim, morri e pronto, não. A minha há de ser morte importante, cheia de aparato, morte de encher a vista dos homens e fazer tapar os olhos das mulheres, deixando só um buraquinho entre os dedos. Pois a máquina da morte, construída por mim mesmo, vai abrir meu peito e esgarçar ele todinho, esgarçar mais um pouquinho, até ficar aparecendo tudo lá dentro, os sentimentos sentindo, as veias se abrindo, o sangue correndo, e vai destampar meu estômago, pra deseninhar as tripas, uma por uma, como se fosse um novelo, vai desemparelhar um pulmão do outro, separando assim, pra mostrar o que é que tem no meio, então vai arrancar meu coração e jogá-lo pra plateia, salpicando o mundo de sangue, enquanto, aí, sim, eu vou morrendo aos pouquinhos, sofrendo até morrer da morte mais linda que alguém já morreu na vida. Eu vou morrer de amor, no meio do sertão, nos braços da seca, com a quentura fervilhando as ideias, enquanto tiver ideia, a vida desistindo de viver, indo embora, a vista turvando, o juízo evaporando, até o finalzinho, aquela hora em que a pessoa pensa com ela mesma, e agora, hein? Então não pensa mais nada e acabou-se.”

Dito isso, e não tendo mais nada pra dizer, voltou pra Nordestina com a finalidade de inventar a máquina de sua própria morte e construí-la com suas próprias mãos, mesmo sabendo que não ia precisar dela.
Quando o povo ainda estava indo, ele já estava voltando.
Agora não tinha mais dúvida, existia mesmo a tal placa “Bem-vindo a Nordestina”, e pra provar que não era mentira podia atestar até que o “vindo” estava meio apagado.
No que avistou a cidade, Antônio concluiu dois pensamentos.
Um era que ninguém sabia como Nordestina era bonita daquele ângulo.
O outro era que agora todo mundo ia ficar sabendo.
Adriana Falcão, in A máquina

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