Ilustração: Fernando Vilela
Uma
vez que nunca tinha pedido sequer um favor pro tempo, por não ser
coisa de Antônio ficar se aproveitando de ninguém por amizade,
estava claro que o tempo não ia lhe negar ajuda justo em hora tão
necessitada.
Por
isso, resolveu chamar a atenção do mundo com a espetacular atração
do sujeito que podia ir ao futuro, e dessa maneira levar o mundo pra
Nordestina assim mesmo, do jeito que o mundo estava. Quando voltasse
do futuro, aí, sim, ia poder consertar o mundo que tinha dado a
Karina de presente, pois, além da vontade, teria o conhecimento, a
técnica e a prática.
Ia
dar certinho.
O
mundo ia se agradar de um sujeito que viajasse no tempo e Karina ia
se agradar do presente que tinha ganhado.
O
único problema era sua falta de experiência no assunto, mas pra
tudo tem que ter uma primeira vez, e então Antônio resolveu que era
aquilo o que ele faria, não tinha o menor motivo pra não ser, não
havia como dar pra trás, era aquilo mesmo, inclusive porque outra
coisa não era, estava decidido, e decisão decidida em véspera de
dia 13 tem o voto dos anjos e ponto, parágrafo.
Depois
de dar umas voltas pelo mundo foi diretamente pra emissora de
televisão.
A
fila de candidatos pra aparecer na TV rodava o quarteirão e a cabeça
de Antônio pensava.
O
quarteirão era do tamanho de Nordestina e a cabeça de Antônio
pensava.
Anoiteceu,
amanheceu, anoiteceu, amanheceu e a cabeça de Antônio pensava.
A
mulher 853 da fila tinha oito ovos com casca, todos oito dentro do
bucho, mesmo sem ser bicho que põe ovo. A moça 1.115 e a 1.116 se
estranhavam disputando um só marido. Uma olhava de banda e coiceava
tal qual bicho. A outra desafiava. Uma ameaçava ir, não ia, e a
outra dava meia-volta, cismada. O rapaz 510 desengolia relógios que
nunca tinha engolido, todos eles marcando hora exata, por isso achava
que ia ser o escolhido. Aconteceu que quando chegou a vez de Antônio,
o homem lá da televisão ficou numa dúvida danada.
“Eu,
Antônio de dona Nazaré, dou minha palavra que vou pra outro tempo,
mais precisamente pro futuro. Mas não só vou ao futuro por ir, fui
e pronto, não. A minha ida há de ser proveitosa, pois vou a
negócios.”
O
cidadão que viajava no tempo prometia ser um grande espetáculo.
E
quem podia garantir que Antônio ia ao futuro mesmo?
A
única garantia que podia oferecer era sua palavra.
“É
pouco”, o homem lá da televisão falou, “vai que na hora agá,
tudo pronto, todo mundo esperando pra ver, e o negócio dá errado? É
melhor não arriscar”, e foi logo chamando o número do próximo.
“Espere”,
Antônio gritou, “se minha palavra é garantia pouca ofereço então
minha vida, serve?” E o homem lá da televisão se mostrou
interessado.
“Eu,
Antônio de dona Nazaré, dou minha palavra que vou pra outro tempo,
mais precisamente pro futuro, com a finalidade de melhorar o mundo
que vou dar de presente a Karina. Partirei de hoje a oito dias,
saindo do meio da praça de Nordestina, porém voltarei logo. E, se
acaso o negócio der errado e eu não cumprir minha promessa, então
não me interessa mais viver e aí dou minha palavra que morro. Mas
não vou morrer só assim, morri e pronto, não. A minha há de ser
morte importante, cheia de aparato, morte de encher a vista dos
homens e fazer tapar os olhos das mulheres, deixando só um
buraquinho entre os dedos. Pois a máquina da morte, construída por
mim mesmo, vai abrir meu peito e esgarçar ele todinho, esgarçar
mais um pouquinho, até ficar aparecendo tudo lá dentro, os
sentimentos sentindo, as veias se abrindo, o sangue correndo, e vai
destampar meu estômago, pra deseninhar as tripas, uma por uma, como
se fosse um novelo, vai desemparelhar um pulmão do outro, separando
assim, pra mostrar o que é que tem no meio, então vai arrancar meu
coração e jogá-lo pra plateia, salpicando o mundo de sangue,
enquanto, aí, sim, eu vou morrendo aos pouquinhos, sofrendo até
morrer da morte mais linda que alguém já morreu na vida. Eu vou
morrer de amor, no meio do sertão, nos braços da seca, com a
quentura fervilhando as ideias, enquanto tiver ideia, a vida
desistindo de viver, indo embora, a vista turvando, o juízo
evaporando, até o finalzinho, aquela hora em que a pessoa pensa com
ela mesma, e agora, hein? Então não pensa mais nada e acabou-se.”
Dito
isso, e não tendo mais nada pra dizer, voltou pra Nordestina com a
finalidade de inventar a máquina de sua própria morte e construí-la
com suas próprias mãos, mesmo sabendo que não ia precisar dela.
Quando
o povo ainda estava indo, ele já estava voltando.
Agora
não tinha mais dúvida, existia mesmo a tal placa “Bem-vindo a
Nordestina”, e pra provar que não era mentira podia atestar até
que o “vindo” estava meio apagado.
No
que avistou a cidade, Antônio concluiu dois pensamentos.
Um
era que ninguém sabia como Nordestina era bonita daquele ângulo.
O
outro era que agora todo mundo ia ficar sabendo.
Adriana
Falcão, in A máquina
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