sábado, 19 de maio de 2018

A cura que adoece

Há duas semanas, estive em Ouro Preto para o Fórum de Letras, da incansável Guiomar de Grammont. Cheguei no início da noite. Caía uma tempestade e, sem ânimo para sair do quarto, me deitei.
Antes de pegar no sono, retomei a leitura das Cartas escolhidas , de Michelangelo Buonarroti (editora Unicamp / editora Unicfest, prefácio, seleção, tradução e notas de Maria Berbara). Dormi agarrado ao livro.
Sonhei, então, que estava em Ouro Preto não para participar do Fórum, mas para visitar meu avô materno, José Pedro – que, na verdade, não cheguei a conhecer. Encontro-o em sua cama, magro e ofegante. Assustado, peço que chamem seu médico.
Abro a porta, é o médico. Na verdade, é Gabriel García Márquez, que veste um jaleco branco e empunha uma maleta de couro. Não ouso admitir que o reconheço. Nervoso, cumprimento-o e o conduzo ao quarto de meu avô.
Por que adotou a nova profissão? O que o levou a se mudar secretamente para Ouro Preto? A agonia de meu avô, porém, não permite que eu me detenha nessas divagações.
O doutor Márquez examina seu doente. Não gosta do que vê. Pede, então, uma cadeira e senta a seu lado. Da maleta de médico, tira um livro. Abre-o e lê em voz alta um poema.
Não consigo recordar os versos. Sei que são do próprio García Márquez. Enquanto escuta o poema, meu avô abre os olhos, a face se aviva, a respiração desacelera. Nos últimos versos, já está sentado.
Aliviado, acompanho o doutor Marquez até a saída. “É espantoso que um poema possa curar”, eu lhe digo. Gabriel García Má rquez se vira e, com os olhos tristes, me diz: “A literatura cura quem lê. Mas ela adoece quem escreve”. Suspira e prossegue: “Veja como estou – e ninguém pode fazer nada por mim”.
Noto então que o escritor empalideceu, está trêmulo, que suas mãos vacilam. A dor do leitor (meu avô) agora é sua dor. Amparo-o até seu carro. Fecho a porta. Acordo.
Na manhã seguinte, o sonho com García Márquez me ajuda a ler a correspondência de Michelangelo. As 72 cartas selecionadas por Maria Berbara têm sua súmula em carta que ele enviou a Niccolò Martelli em 1542. Diz Michelangelo: “Vejo que me imaginaste como o que Deus gostaria que eu fosse. Sou um pobre homem de pouco valor”.
Modéstia? É bem mais que isso. Imitando o doutor Márquez, Michelangelo tinha consciência de que, diante da obra, o artista não passa de uma formiga. Alguém esmagado por sua própria grandeza e que sofre do que faz.
Não existem palavras para explicar essa experiência, e as cartas de Michelangelo – práticas, objetivas, frias – refletem essa consciência. Em uma delas, a Tommaso Cavalieri, ele admite: “Nada mais tenho a dizer. Lede o coração, e não a carta, pois a pluma é incapaz de alcançar o afeto”. Cita um verso de Petrarca; só a poesia (como em meu sonho) consegue dizer o indizível.
Com problemas de dinheiro, Michelangelo se lamenta com um prelado anônimo, que alguns identificam como Marco Vigerio, o bispo de Sinigaglia. O religioso procura acalmá-lo, sugerindo que se concentre em sua pintura. Michelangelo é áspero: “Respondo que se pinta com o cérebro e não com as mãos”.
Pinta-se (cria-se) com a mente, e as chaves da mente, muitas vezes, se guardam em zonas inacessíveis. Também a escrita – não falo das palavras pragmáticas dos burocratas, dos representantes comerciais e dos homens “cheios de si” – não se deixa normalizar.
Michelangelo acata a sugestão inútil do monsenhor, que fala em nome do papa. Mas adverte: “Não posso negar nada ao Papa; pintarei tristemente, e produzirei obras tristes”.
Sobre o mesmo tema, em carta a Tommaso Cavalieri, ele resume: “Farei do coração rocha, e avançarei”. Tem consciência de que o caminho da arte (como sugere o doutor Márquez) o adoece. Terá de suportar.
Suas obras, até hoje, espantam e maravilham. Elas nos curam da dor de existir. Pagou, porém, um alto preço. Ao cardeal Bernardo Dovizi, confessa: “Rogo, não como amigo ou servo, mas como um homem vil, pobre e louco”.
Em outra carta, ao pintor Sebastiano Veneziano, Michelangelo fala de um jantar que lhe pareceu muito agradável, “pois abandonei um pouco a minha melancolia, ou, melhor dito, a minha loucura”. Sua arte, que nos consola e encoraja, o corrói.
Para fugir de si, ele se detém em problemas práticos, como a falta de dinheiro, as dificuldades políticas, a longa espera pelos mecenas, a inveja dos concorrentes, como Rafael. Contudo, aqui e ali, deixa sempre escapar algo de seu sofrimento.
Ao pai, Lodovico, logo depois de terminar a capela Sistina, ele diz: “O Papa ficou muito satisfeito, mas outras coisas não saíram como eu esperava; a isso culpo os correntes tempos, que são muito contrários à nossa arte”.
Numa última, e furiosa, carta ao pai, com quem rompeu relações no ano de 1523, depois de brigar com sua madrasta, Lucrezia, Michelangelo vocifera: “Cuidai-vos, e tende cuidado com que vos cuida, pois só se morre uma vez, e não se retorna para consertar as coisas malfeitas”.
Amparado pelas palavras de Michelangelo, retorno ao presente. Nossos tempos parecem favoráveis aos artistas (e aos escritores), que se tornaram celebridades e pontificam em festas, palcos e seminários. Isso é uma ilusão. Sempre me incomoda quando se rouba do artista – em nome do sucesso, do prestígio, da “assinatura” – um pedaço de sua dor.
Não que o artista tenha de sofrer ou esteja condenado à crueldade. Ocorre que a arte é um trabalho como qualquer outro, e por isso cobra seu preço e exige sacrifícios.
As cartas de Michelangelo derrubam o mito contemporâneo de que o artista é um astro sobre-humano, que leva uma existência glamourosa e fútil. Sem suor, sem feridas, sem desgaste, nada se faz. É o que o doutor García Márquez comunica em meu sonho: pode ser belo, mas não é fácil.
Devemos respeitar essa dor, que é mais preciosa que as luzes do sucesso e as pompas da consagração. As modas, as feiras e os circuitos comerciais que fiquem com seu fantasma inexistente. O artista – como Márquez e Michelangelo –, sempre intransigente, se manterá aferrado a sua dor.
José Castello, in Sábados inquietos

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