É,
suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo
procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é
que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do
que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre
o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o
mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair
sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos
irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão
da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não
poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no
entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco,
vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de
mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu
sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era
criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no
céu.” Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”.
Por
quê? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida
insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior
garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim
não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.
Esta
é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o
segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa
alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de
vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de
horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo
primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu
irmão. O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o
outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa
justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar
dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos
essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro
dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu
amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo
ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova
casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos
salvamos. Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde
demais – vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao
homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu
erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é
apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro
não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em
silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se
abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e
sangue, a lama viva. Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver.
Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo terceiro tiro o que eu
dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente – não
nas consequências, mas em si inocente como a de um filho de quem o
pai não tomou conta. Tudo o que nele foi violência é em nós
furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de
nos entendermos. Para que a casa não estremeça. A violência
rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da
esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia
aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim
se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado
inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de
lhe ter dito: também eu.
Eu
não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a
uma coisa pura e cheia de desamparo e Mineirinho – essa coisa que
move montanhas e é a mesma que o faz gostar “feito doido” de uma
mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que
dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida
como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de
vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador – em amor
pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma
que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu
tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu,
não me perdi, experimentei a perdição. A justiça prévia, essa
não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos
mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque
adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele
ser um doente do crime. Continuo, porém, esperando que Deus seja o
pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem. E
continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu
tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que
fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela está de pé, e
Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma. Foi
fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no
último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a
minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha
casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me
justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses
me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei
um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranquila, e que
outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há
a fazer. Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes
de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.
Porque
quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria
tudo – uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do
homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e
matou; e fica muda diante do S. Jorge de ouro e diamantes. Essa
alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do
homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é o
desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem
morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito
doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro
pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o
que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor
profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se
irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela
esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de
destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais
com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.
Até
que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta
que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste
a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito
desarticulado serve de sinalização. Uma justiça prévia que se
lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que
mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se
olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos
escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue
à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e
aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se
esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o
justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo
eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um
longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante
está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime,
nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir
tranquila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos
refugiamos no abstrato.
O
que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.
Clarice
Lispector, in Todos os contos
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