Unamos
agora os pés e demos um salto por cima da escola, a enfadonha
escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas,
apanhá-las, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias,
onde quer que fosse propício a ociosos.
Tinha amarguras esse tempo; tinha os
ralhos, os castigos, as lições árduas e longas, e pouco mais,
muito pouco e muito leve. Só era pesada, a palmatória, e ainda
assim... Ó palmatória, terror dos meus dias pueris, tu que foste o
compelle intrare com que um velho mestre, ossudo e calvo, me
incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que
ele sabia, benta palmatória, tão praguejada dos modernos, quem me
dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha alma imberbe, as minhas
ignorâncias, e o meu espadim, aquele espadim de 1814, tão superior
à espada de Napoleão! Que querias tu, afinal, meu velho mestre de
primeiras letras? Lição de cor e compostura na aula; nada mais,
nada menos do que quer a vida, que é das últimas letras; com a
diferença que tu, se me metias medo, nunca me meteste zanga. Vejo-te
ainda agora entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco,
capote, lenço na mão, calva à mostra, barba rapada; vejo-te
sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos
depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três anos, calado,
obscuro, pontual, metido numa casinha da Rua do Piolho, sem enfadar o
mundo com a tua mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho
nas trevas, e ninguém te chorou, salvo um preto velho, — ninguém,
nem eu, que te devo os rudimentos da escrita.
Chamava-se Ludgero o mestre; quero
escrever-lhe o nome todo nesta página: Ludgero Barata, — um nome
funesto, que servia aos meninos de eterno mote a chufas. Um de nós,
o Quincas Borba, esse então era cruel com o pobre homem. Duas, três
vezes por semana, havia de lhe deixar na algibeira das calças, —
umas largas calças de enfiar —, ou na gaveta da mesa, ou ao pé do
tinteiro, uma barata morta. Se ele a encontrava ainda nas horas da
aula, dava um pulo, circulava os olhos chamejantes, dizia-nos os
últimos nomes: éramos sevandijas, capadócios, malcriados,
moleques. — Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, porém,
deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar.
Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha
infância, nunca em toda a minha vida, achei um menino mais gracioso,
inventivo e travesso. Era a flor, e não já da escola, senão de
toda a cidade. A mãe, viúva, com alguma coisa de seu, adorava o
filho e trazia-o amimado, asseado, enfeitado, com um vistoso pajem
atrás, um pajem que nos deixava gazear a escola, ir caçar ninhos de
pássaros, ou perseguir lagartixas nos morros do Livramento e da
Conceição, ou simplesmente arruar, à toa, como dois peraltas sem
emprego. E de imperador! Era um gosto ver o Quincas Borba fazer de
imperador nas festas do Espírito Santo. De resto, nos nossos jogos
pueris, ele escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma
supremacia, qualquer que fosse. Tinha garbo o traquinas, e gravidade,
certa magnificência nas atitudes, nos meneios. Quem diria que...
Suspendamos a pena; não adiantemos os sucessos. Vamos de um salto a
1822, data da nossa independência política, e do meu primeiro
cativeiro pessoal.
Machado de Assis, in Memórias
póstumas de Brás Cubas
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