sábado, 27 de janeiro de 2018

Horas abertas

As horas abertas são quatro: meio-dia, meia-noite, anoitecer e amanhecer. São as horas em que se morre, em que se piora, em que os feitiços agem fortemente, em que as pragas e as súplicas ganham expansões maiores. Horas sem defesa, liberdade para as forças malévolas, os entes ignorados pelo nosso entendimento e dedicados ao trabalho da destruição.
As aberturas do corpo não são as verdadeiras entradas para esses inimigos constantes e misteriosos, e sim outros pontos diversos que instintivamente resguardamos: os pulsos, o pavilhão auricular, o pescoço, entre os dedos, os jarretes, a fronte. Por isso é que as joias foram inventadas, ocultando no exterior ornamental a intenção secreta da custódia mágica. Colares, brincos, pulseiras, anéis, diademas, os enfeites para os cabelos, argolas para as pernas, tornozelos, são guardas vigilantes, repelindo as sucessivas ondas assaltantes que tentam por essas regiões, onde a pele dizem ser mais fina, permitindo a penetração insidiosa.
As horas abertas correspondem a essas vias de acesso ao corpo humano. São horas diversas de pressão e desequilíbrio atmosférico, predispondo os estados mórbidos às modificações letais.
Em 1944, na residência de Batista Pereira, na Gávea, o Prof. Anes Dias, da Faculdade de Medicina, perguntou-me quais eram, para o povo, as chamadas horas abertas. Ouvido a exposição, enumerou os elementos da meteorologia médica suscetíveis de haver motivado a tradição. Lembrei que certos remédios, notadamente os purgativos, jamais são ingeridos fora de um horário rigoroso, evitando as horas abertas, ameaçadoras. Jaime Cortesão, presente, recordou a mesma crença em Portugal, possuindo os seres fabulosos e apavorantes que aparecem, invariavelmente, nessas horas sinistras.
Foram clássicos os vocábulos, em trezentos anos de uso, ligados à superstição, aramá, eramá, ieramá, muitieramá, significando em hora má. Na ambivalência natural, meia-noite e meio-dia prestam-se às rogativas benéficas, mas constituem exceção. As orações e pragas nessas horas são apelos violentos, irresistíveis, obrigando a obediência divina.
Comum e popularmente, a hora má é a hora aberta.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

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