A
morte é lúgubre lorde: a ambígua. De repente, como sempre, um
homem faleceu. Diziam-no mau. Entre tudo, porém, o cemitério
prosseguia de decisivo quietar quem sabe o sítio mais amigo da
cidade. O enterro do homem, não conhecido, ensinou-o ao forasteiro.
Podia-se procurar passeio, o desexílio, em seu reduzido espaço, dos
que perderam para sempre o endereço. Na dita cidade, muito longe,
árdua do todo-o-dia, fatal, fabricada, enfadonha. Ali, o mar era o
cemitério.
A
gente perdia a abusão de estar-se em lugar danoso, de quebrantos ou
assombro e apegava-se à paz, no descritivo, a paisagem
especializada. A erva, consequente, permeio às tumbas, a grama
urbana; um estapaflorir; zumbidos; às vezes borboletas. Sob luz
reta, no ponto do meio-dia, a lousa quente. Tarde ainda mais limpa; a
que não traz sombras. As casuarinas e seus instantes de vento.
Queixava-se o coveiro de dores nas costas, do custo da vida; seu
ajudante, descalço, fumava cigarros caros. De primeiro, temia-se a
terra, aquela, havida por maléfica: limpavam-se do pó os sapatos.
Mas, melhor pudesse qualquer um — no chamado campo-santo —
defender sua loucura das dos outros. Dos mais outros, também,
talvez. Quem morre, morreu mesmo? A morte é maior que a lógica. E,
quando menos quando, vinha a moça. Viera, vários dias, trazia
longas flores. Nem parecia ver ninguém ou ouvir, encerrada em
costumeiro pesar. Deixava-a o vestido preto mais esvelta que as
outras, da cidade; mais rara. Devia ser filha do homem falecido.
Nunca
o avistara o forasteiro. Achava porém de apreender-lhe os traços
nas feições da moça, a rude maldade de que o reputavam,
desabrangendo sua matéria. Dele, contava-se: que mais perversos
tendo sido o pai e o avô — do sujo e errado outrora. Nenhuma vida
tem resumo: a tarda crosta da vida, com seu trecheio de ilusões. A
gente vê só o cinzento, mas têm-se de adivinhar o branco e o
preto.
O
homem falecido, seu recente sepulcro, seria num dos extremos, aonde
parava a moça, dali o recinto prolongando-se em emaranhado de
bosque. Até onde não se devia ir, enquanto, seguida apenas a
distância, por lá ela permanecesse, decerto atinadamente, lúcida
lagrimada. Além, teria sido o cemitério primeiro, sua outra grande
porta oculta. A antiga.
Às
vezes, ela tardava em vir. Andava-se, a léu de labirinto, no
quiescer de ante vazias permanências — dos de ide-vós-sós;
faz-se que contra querubins em cavernas gritantes. As vozes humanas é
que inventaram o silêncio. É possível um não-mais-futuro?
Vive-se, e ri-se. O gênio ainda não germinou bem em nós,
distraídos e fracos. Mas, na necrópole, uma mudez se move, algo que
ultrapassava a mudez; pesam-se as espécies imperceptíveis, visões
intermutáveis. Por maneira que as aceitávamos. Mais perto do mundo.
Algo havia; pairava. — “Refuja o denso viver, pela levez da
morte...” — disseram-me: voz indefinida, a minha talvez. Sim,
a moça era quase prevista surpresa. Um dia, haverá sábios. E, que
nos vem da vida, enfim? — com o continuitar do ar, do chão e do
relógio. A morte: o inenarrável rapto.
E
ela. Demorou o rosto, deu seu ser a perceber. Perto que perto. Era
boa. Era bela. Amor... — palavra que sobrou de frases. Amor,
o que lhe radiava da figura, na fala das fadas. Demasiado grande, que
amedrontava.
Sua
lembrança, ideia clara. A marca da imagem. Inafastável, como
persistia, de negro vestida, a obstinada presença, nessa
entreparagem, na vagação, nas horas temporárias. Adiara o
forasteiro de ir à sepultura do homem falecido. Da moça, não se
viam ali sinais, nenhumas flores. Murchas, em volta, apenas coroas. A
arruda-dos-muros. A lápide — cais tão calmo. Só uns passarinhos
em piqueniques. Mortas, só as folhas; e o sol enviava mais calor.
Sim, com esquisitinho sem-sossego, os pássaros algo explicam. E o
coveiro, espião. — “Ele é seu parente?” Os olhos das
pessoas já são coisas de fantasmas. A meu não, ele riu. Tinha
pensado; porque com o defunto em mim notara parecença. Estaria
tonto, o coveiro, toupeireiro operador. — “Era homem mau?”
— indaguei. — “Era homem justo. Bom, mas vagaroso.” E
avancei: — “E a moça?” Teve ele forte espanto. — “Pois,
não é sua conhecida? Não vem com o senhor?” — a
desajuizar-me. Neutra, a relva, esparramaz, alegre no
entreabrirfechar florinhas, se não há nenhum nunca. O vento,
devolvedor de palavras. O homem, que falecera, não podia. Depois
da vida, o que há, é mais vida... — disse-me: o que minha
mais funda memória me telegrafou. Retomava o trabalho o coveiro,
dolorento, sabedor de ofício. Já como fósseis os ossos que ele
transplantava, naquele bom lugar universo.
Ela
não voltaria mais... — pensei, subciente. O rapaz ajudante
passava, ao ombro suas ferramentas. — “Acho que é uma mesma
que vinha, noutra ocasião...” — e ele tinha as petulâncias
da vida. — “Vinha escolher a própria cova...” —
ignorava a especulação poética, o mistério esperançoso. Se o
falecido se parecia comigo? — “Todos parecem com todos.”
Inegadamente. — “Homem bom, no geral...” — ele queria
gratificação. Nunca mais? Um enterro chegava, entrava. Será... —
doía, o despropositivo, a hipótese mais eficaz. Não. Só era o de
um morto. Nunca mais.
Se
a gente podia dali sair, a atento horizonte, pela porta primitiva,
olvidado vislumbráculo? Não, o coveiro intransigiu, ria-se do
desmotivo daquilo. Enferrujara, montões de terra entupindo o trato,
o mato rijo, espessos de urtigas, roseiras bravas. Mas, informou: que
não havia segredo, a moça era filha de um Seo Visneto, tinha vindo,
nove dias, cumprir promessa de rezar e pôr flores, no cruzeirinho
das Almas... — “Pois, senhor...” Não mais. Ainda não. Devia
em seguida partir, o forasteiro, deixar a fácil, fatigadora, fingida
cidade. Apanhou uma pedrinha, colocou-a no túmulo do homem falecido.
A liberdade é absurda. A gente sempre sabe que podia ter sabido.
Guimarães
Rosa, in Ave, palavra
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