sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Sem tangência

A morte é lúgubre lorde: a ambígua. De repente, como sempre, um homem faleceu. Diziam-no mau. Entre tudo, porém, o cemitério prosseguia de decisivo quietar quem sabe o sítio mais amigo da cidade. O enterro do homem, não conhecido, ensinou-o ao forasteiro. Podia-se procurar passeio, o desexílio, em seu reduzido espaço, dos que perderam para sempre o endereço. Na dita cidade, muito longe, árdua do todo-o-dia, fatal, fabricada, enfadonha. Ali, o mar era o cemitério.
A gente perdia a abusão de estar-se em lugar danoso, de quebrantos ou assombro e apegava-se à paz, no descritivo, a paisagem especializada. A erva, consequente, permeio às tumbas, a grama urbana; um estapaflorir; zumbidos; às vezes borboletas. Sob luz reta, no ponto do meio-dia, a lousa quente. Tarde ainda mais limpa; a que não traz sombras. As casuarinas e seus instantes de vento. Queixava-se o coveiro de dores nas costas, do custo da vida; seu ajudante, descalço, fumava cigarros caros. De primeiro, temia-se a terra, aquela, havida por maléfica: limpavam-se do pó os sapatos. Mas, melhor pudesse qualquer um — no chamado campo-santo — defender sua loucura das dos outros. Dos mais outros, também, talvez. Quem morre, morreu mesmo? A morte é maior que a lógica. E, quando menos quando, vinha a moça. Viera, vários dias, trazia longas flores. Nem parecia ver ninguém ou ouvir, encerrada em costumeiro pesar. Deixava-a o vestido preto mais esvelta que as outras, da cidade; mais rara. Devia ser filha do homem falecido.
Nunca o avistara o forasteiro. Achava porém de apreender-lhe os traços nas feições da moça, a rude maldade de que o reputavam, desabrangendo sua matéria. Dele, contava-se: que mais perversos tendo sido o pai e o avô — do sujo e errado outrora. Nenhuma vida tem resumo: a tarda crosta da vida, com seu trecheio de ilusões. A gente vê só o cinzento, mas têm-se de adivinhar o branco e o preto.
O homem falecido, seu recente sepulcro, seria num dos extremos, aonde parava a moça, dali o recinto prolongando-se em emaranhado de bosque. Até onde não se devia ir, enquanto, seguida apenas a distância, por lá ela permanecesse, decerto atinadamente, lúcida lagrimada. Além, teria sido o cemitério primeiro, sua outra grande porta oculta. A antiga.
Às vezes, ela tardava em vir. Andava-se, a léu de labirinto, no quiescer de ante vazias permanências — dos de ide-vós-sós; faz-se que contra querubins em cavernas gritantes. As vozes humanas é que inventaram o silêncio. É possível um não-mais-futuro? Vive-se, e ri-se. O gênio ainda não germinou bem em nós, distraídos e fracos. Mas, na necrópole, uma mudez se move, algo que ultrapassava a mudez; pesam-se as espécies imperceptíveis, visões intermutáveis. Por maneira que as aceitávamos. Mais perto do mundo. Algo havia; pairava. — “Refuja o denso viver, pela levez da morte...” — disseram-me: voz indefinida, a minha talvez. Sim, a moça era quase prevista surpresa. Um dia, haverá sábios. E, que nos vem da vida, enfim? — com o continuitar do ar, do chão e do relógio. A morte: o inenarrável rapto.
E ela. Demorou o rosto, deu seu ser a perceber. Perto que perto. Era boa. Era bela. Amor... — palavra que sobrou de frases. Amor, o que lhe radiava da figura, na fala das fadas. Demasiado grande, que amedrontava.
Sua lembrança, ideia clara. A marca da imagem. Inafastável, como persistia, de negro vestida, a obstinada presença, nessa entreparagem, na vagação, nas horas temporárias. Adiara o forasteiro de ir à sepultura do homem falecido. Da moça, não se viam ali sinais, nenhumas flores. Murchas, em volta, apenas coroas. A arruda-dos-muros. A lápide — cais tão calmo. Só uns passarinhos em piqueniques. Mortas, só as folhas; e o sol enviava mais calor. Sim, com esquisitinho sem-sossego, os pássaros algo explicam. E o coveiro, espião. — “Ele é seu parente?” Os olhos das pessoas já são coisas de fantasmas. A meu não, ele riu. Tinha pensado; porque com o defunto em mim notara parecença. Estaria tonto, o coveiro, toupeireiro operador. — “Era homem mau?” — indaguei. — “Era homem justo. Bom, mas vagaroso.” E avancei: — “E a moça?” Teve ele forte espanto. — “Pois, não é sua conhecida? Não vem com o senhor?” — a desajuizar-me. Neutra, a relva, esparramaz, alegre no entreabrirfechar florinhas, se não há nenhum nunca. O vento, devolvedor de palavras. O homem, que falecera, não podia. Depois da vida, o que há, é mais vida... — disse-me: o que minha mais funda memória me telegrafou. Retomava o trabalho o coveiro, dolorento, sabedor de ofício. Já como fósseis os ossos que ele transplantava, naquele bom lugar universo.
Ela não voltaria mais... — pensei, subciente. O rapaz ajudante passava, ao ombro suas ferramentas. — “Acho que é uma mesma que vinha, noutra ocasião...” — e ele tinha as petulâncias da vida. — “Vinha escolher a própria cova...” — ignorava a especulação poética, o mistério esperançoso. Se o falecido se parecia comigo? — “Todos parecem com todos.” Inegadamente. — “Homem bom, no geral...” — ele queria gratificação. Nunca mais? Um enterro chegava, entrava. Será... — doía, o despropositivo, a hipótese mais eficaz. Não. Só era o de um morto. Nunca mais.
Se a gente podia dali sair, a atento horizonte, pela porta primitiva, olvidado vislumbráculo? Não, o coveiro intransigiu, ria-se do desmotivo daquilo. Enferrujara, montões de terra entupindo o trato, o mato rijo, espessos de urtigas, roseiras bravas. Mas, informou: que não havia segredo, a moça era filha de um Seo Visneto, tinha vindo, nove dias, cumprir promessa de rezar e pôr flores, no cruzeirinho das Almas... — “Pois, senhor...” Não mais. Ainda não. Devia em seguida partir, o forasteiro, deixar a fácil, fatigadora, fingida cidade. Apanhou uma pedrinha, colocou-a no túmulo do homem falecido. A liberdade é absurda. A gente sempre sabe que podia ter sabido.
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

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