Em
toda família ilustre e velha existe um membro desajustado e causador
de escândalo. É a ovelha negra, black lamb, brebis noir, Schaf
Schwarze. No rebanho vive um animal insubmisso e difícil. É a
ovelha negra. Num partido político um correligionário
desacomodado, exigente, pessimista. É a ovelha negra.
O
Sr. Brasil Gérson, escrevendo sobre o ex-futuro Barão de Vila Rica
(O Jornal, Rio de Janeiro, 27 de abril de 1958), lembra à
pretensão do sonhado título nobiliárquico “se aproveitou a
ovelha negra da nobre família Lima e Silva (do Duque de
Caxias), o bon vivant Manuel Luís Lima e Silva”. Essa
ovelha negra elaborou uma alta chantagem, arrancando dinheiro
a quem deseja ser barão.
Diz-se
que semelhantemente na Inglaterra, na Alemanha, em Portugal, na
Espanha e nos países de língua francesa corre o brebis noir.
A
ovelha, o cordeiro, o anho, símbolos da castidade, inocência,
pureza; Cordeiro de Deus, ovelha pascal, Agnus Dei, animais
votivos por excelência aos deuses; representações da mansidão,
obediência, doçura, em milênios de história religiosa, tomam
formas rebeldes e duras na imagem popular, significando a exceção
condenada, constituindo a triste prerrogativa da exclusão na linha
da bondade normal.
O
prejuízo ocorre pela presença da cor negra, votada aos deuses
subterrâneos, cor dos abismos, ideia da Noite, o Erebo, o Caos, as
Parcas sem piedade, da Morte, a negra Morte, e da negra Miséria. É
a cor denunciadora do sofrimento, da crueldade, da paixão interior,
desejos materiais, acabrunhantes e esmagadores. Alma negra. Negro
destino. Horas negras. Quando Gerard de Nerval fala no soleil noir
de la mélancolie refere-se à origem etimológica da
Melancolia, a bílis negra, mélas-kholé.
O
animal negro era dedicado às forças obscuras da terra, aos deuses
telúricos, à grandeza misteriosa da Tellus Mater na Grécia e Roma,
Tétis e Gaea, mãe dos seres, inesgotável nutridora dos viventes.
Na
Ilíada (III), quando Páris desafia Menelau para um combate
singular, terminando desta forma a luta entre gregos e troianos, uma
cerimônia preliminar se impõe: o sacrifício de um cordeiro branco
ao Sol e de uma ovelha negra à Terra. Mandados por Heitor,
dois arautos troianos trouxeram os animais e Agamênon mandou
Taltíbios buscar as vítimas, guardadas no bojo dos navios argivos.
O próprio Rei Príamo oficiou, degolando as ovelhas com o
impiedoso bronze.
Tétis,
com Hélios e as Erínias, tinha a missão suprema da vigilância,
fazendo observar a santidade dos juramentos e a fiel observância da
palavra dada, encarregando-se, com seus companheiros, de fazer
castigar no Inferno o feio pecado da violação aos compromissos de
honra.
Por
isso Páris e Menelau a homenagearam antes do duelo prometendo o
cumprimento exato de tudo quanto se pactuara, oferecendo-lhe pela mão
do Rei Príamo a ovelha negra, como penhor do trato formal.
Era
assim em 1180, antes de Jesus Cristo nascer...
Essencial
que a ovelha fosse negra, porque negra seria a cor indispensável
para qualquer animal destinado à expulsão dos males, emissário de
pecados, cujo tipo mais ilustre é o famoso Azazel, o Bode Expiatório
de Israel. O principal era a cor, aussi noir que possible,
como reparou Sir James George Frazer.
No
rebanho, a ovelha negra é a marcada, de antemão escolhida
para o sacrifício, eleita pelo destino da pelagem à imolação
fatal, indicada sem remissão para satisfazerem pactos ou pecados
alheios. Pode ser ou não ser uma má ovelha mas sua morte a
distanciará de todas as companheiras do redil. A ovelha negra
era, funcionalmente, a exceção na normalidade da espécie.
Excluía-se do comum, do habitual, do rotineiro, do usual. O seu
caráter de animal sagrado não afastaria a crença de sua finalidade
inapelável.
Esse
índice de excepcionalidade, fechado ciclo religioso com o advento do
Cristianismo, não mais tendo o sentido de aplicação litúrgica e
não desaparecendo do vocabulário vulgar, fixou-se como o tabu dos
animais marcados, os entes que têm, notória, uma tacha, um
sinal que os diferencia do normal. “Se Deus o marcou, alguma
cousa lhe achou!” – ainda diz o povo. O Velho Testamento
mandava afastar do altar (Levítico, XXI,18-21) homens e animais
(Deuteronômio, XV,21) portadores de anomalias dentro do culto
consuetudinário. A ovelha negra era uma exceção como vítima
protocolarmente escolhida. Não havendo a função e resistindo à
tradição, estaria marcada para o Mal porque para o Bem não
mais era possível, dissipado o cerimonial onde era elemento
propiciatório.
Ficou
a ovelha negra sendo, aos olhos cristãos, uma reminiscência
viva da religião condenada do Paganismo, índice oblacional aos
deuses terríveis da Terra, que da vida (Homero, Ilíada, III,
245). Destinada à expiação sacra entre gregos e romanos, a ovelha
negra encarnou, no mundo cristão, a expressão sacrificial ao
pecado, ao erro, à desobediência dos preceitos divinos.
Mesmo
depois de 394, quando o Imperador Teodósio mandou fechar o Templo
das Vestais em Roma, o derradeiro recanto onde os deuses recebiam
oferendas, os costumes prolongaram a existência religiosa antiga
entre os camponeses, aldeias e campos, e a ovelha negra , muito
depois da oficialização cristã, continuou abatida aos manes
defuntos do Olimpo. Talqualmente o Bode e a Cabra, que não tiveram
acolhida nas lendas cristãs, a ovelha negra é uma sobrevivência
pagã legitimíssima.
Esta
é, para mim, não a estória, mas a história da ovelha negra.
Luís
da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz
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