domingo, 5 de novembro de 2017

Testamento

Tempos atrás eu sugeri que se fizesse uma mudança na liturgia que marca a passagem dos anos da vida de uma pessoa, que não mais se apagassem as velinhas, como se a morte dos anos passados fosse coisa a ser celebrada, mas que se acendesse uma única vela, na esperança de um futuro semelhante ao da vela, de luz e tranquilidade.
Num ensaio que escreveu sobre a filosofia do mobiliário, Edgar Alan Poe manifestou o seu horror aos tipos de iluminação que, já no seu tempo, iam tornando as velas obsoletas. Ele sabia que o que estava em jogo não era apenas a luz, no seu aspecto físico. Era a alma. Bachelard tem a mesma opinião. Tanto assim que, na sua meditação sobre A chama de uma vela, ele observou que há cantos do nosso psiquismo que só suportam uma luz bruxuleante. Uma pessoa diante da luz fluorescente não é a mesma diante de uma vela que queima na escuridão. Disso sabem os amantes e é por isso que escolhem jantar à luz das velas.
O tempo passou e chegou a hora de reacender a minha vela. E não é possível fazer isso sem pensar aqueles pensamentos que só se mostram quando a luz bruxuleante se acende. Que pensamentos pensarei? Acho que vou meditar sobre o meu testamento. É uma ideia da qual não se pode fugir, quando se dá conta de que a cera que resta é muito menos que a cera que já se queimou.
O testamento é o que restou, depois de feitas todas as somas e subtrações. É aquilo que se passa às mãos dos que continuarão a viver depois de nós, com um pedido: “Por favor, na minha ausência, não se esqueça de regar a minha planta...”
Claro que não estou pensando nas coisas que fui ajuntando, ao passar dos anos. Elas não têm a menor importância. Não têm o poder de nos tornar nem mais sábios nem mais felizes. Porque sabedoria e felicidade são coisas que crescem por dentro, enquanto as coisas ajuntadas ficam de fora. Pelo contrário: já vi vidas e amizades perturbadas e destruídas pela disputa de uma herança.
Mas aí me descubro ansioso. Porque a distribuição de propriedades e objetos é coisa simples – basta que se escreva um testamento. Mas aquilo que eu realmente desejo dar para os meus filhos não pode ser dado. É coisa que só pode ser semeada, na esperança de que venha a crescer.
Acho que a minha situação se parece com a do Vinicius. Também ele queria deixar um testamento. Não de coisas, como se fosse um ritual eucarístico, em que o que se dá aos outros são pedaços do próprio corpo, na esperança de que eles comerão e gostarão. No fundo o que se deseja é a imortalidade: continuar vivos naqueles que comem o que lhes oferecemos como herança.
Mas só existe um jeito de dar ao outro aquilo que é a carne da gente: falando. Vejam só que coisa mais pobre: uma herança onde as coisas deixadas são palavras.
Pois foi justo isso que fez o Vinicius. Seu testamento, de que transcrevo alguns fragmentos, é um poema: “O haver”. Debaixo desse título, tirado da escrituração comercial, está listada a sua “declaração de bens”, o inventário do que sobrou e que ele oferece aos herdeiros.

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio [...]
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido [...]
Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa tola capacidade De rir à toa [...]
Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade [...]
e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança. [...]
Resta [...] essa coragem indizível diante do grande medo [...]
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Sob a luz da minha vela vou ler o poema inteiro. O próprio Vinicius, ao escrever, se sentia como uma vela e dizia: “Resta esse coração queimando como um círio numa catedral em ruínas...”
E é isto que desejo deixar aos meus filhos como herança: a imagem da vela que queima na solidão silenciosa, sem se deixar perturbar pela loucura barulhenta e apressada dos homens de ação e sucesso; sob a luz da vela, no gozo da tranquilidade solitária, acordar o poeta que dorme em nós. O que não é garantia de felicidade. Mas é garantia de beleza e de serenidade. E que coisa mais pode alguém desejar receber como herança?
Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente

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