Tempos atrás eu sugeri que se fizesse
uma mudança na liturgia que marca a passagem dos anos da vida de uma
pessoa, que não mais se apagassem as velinhas, como se a morte dos
anos passados fosse coisa a ser celebrada, mas que se acendesse uma
única vela, na esperança de um futuro semelhante ao da vela, de luz
e tranquilidade.
Num ensaio que escreveu sobre a filosofia
do mobiliário, Edgar Alan Poe manifestou o seu horror aos tipos de
iluminação que, já no seu tempo, iam tornando as velas obsoletas.
Ele sabia que o que estava em jogo não era apenas a luz, no seu
aspecto físico. Era a alma. Bachelard tem a mesma opinião. Tanto
assim que, na sua meditação sobre A chama de uma vela, ele
observou que há cantos do nosso psiquismo que só suportam uma luz
bruxuleante. Uma pessoa diante da luz fluorescente não é a mesma
diante de uma vela que queima na escuridão. Disso sabem os amantes e
é por isso que escolhem jantar à luz das velas.
O tempo passou e chegou a hora de
reacender a minha vela. E não é possível fazer isso sem pensar
aqueles pensamentos que só se mostram quando a luz bruxuleante se
acende. Que pensamentos pensarei? Acho que vou meditar sobre o meu
testamento. É uma ideia da qual não se pode fugir, quando se dá
conta de que a cera que resta é muito menos que a cera que já se
queimou.
O testamento é o que restou, depois de
feitas todas as somas e subtrações. É aquilo que se passa às mãos
dos que continuarão a viver depois de nós, com um pedido: “Por
favor, na minha ausência, não se esqueça de regar a minha
planta...”
Claro que não estou pensando nas coisas
que fui ajuntando, ao passar dos anos. Elas não têm a menor
importância. Não têm o poder de nos tornar nem mais sábios nem
mais felizes. Porque sabedoria e felicidade são coisas que crescem
por dentro, enquanto as coisas ajuntadas ficam de fora. Pelo
contrário: já vi vidas e amizades perturbadas e destruídas pela
disputa de uma herança.
Mas aí me descubro ansioso. Porque a
distribuição de propriedades e objetos é coisa simples – basta
que se escreva um testamento. Mas aquilo que eu realmente desejo dar
para os meus filhos não pode ser dado. É coisa que só pode ser
semeada, na esperança de que venha a crescer.
Acho que a minha situação se parece com
a do Vinicius. Também ele queria deixar um testamento. Não de
coisas, como se fosse um ritual eucarístico, em que o que se dá aos
outros são pedaços do próprio corpo, na esperança de que eles
comerão e gostarão. No fundo o que se deseja é a imortalidade:
continuar vivos naqueles que comem o que lhes oferecemos como
herança.
Mas só existe um jeito de dar ao outro
aquilo que é a carne da gente: falando. Vejam só que coisa mais
pobre: uma herança onde as coisas deixadas são palavras.
Pois foi justo isso que fez o Vinicius.
Seu testamento, de que transcrevo alguns fragmentos, é um poema: “O
haver”. Debaixo desse título, tirado da escrituração comercial,
está listada a sua “declaração de bens”, o inventário do que
sobrou e que ele oferece aos herdeiros.
Resta, acima de tudo, essa capacidade
de ternura
Essa intimidade perfeita com o
silêncio [...]
Resta essa vontade de chorar diante da
beleza
Essa cólera cega em face da injustiça
e do mal-entendido [...]
Resta esse sentimento da infância
subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa tola
capacidade De rir à toa [...]
Resta essa faculdade incoercível de
sonhar
De transfigurar a realidade [...]
e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome
de esperança. [...]
Resta [...] essa coragem indizível
diante do grande medo [...]
Resta essa pobreza intrínseca, esse
orgulho, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do
seu reino.
Sob a luz da minha vela vou ler o poema
inteiro. O próprio Vinicius, ao escrever, se sentia como uma vela e
dizia: “Resta esse coração queimando como um círio numa catedral
em ruínas...”
E é isto que desejo deixar aos meus
filhos como herança: a imagem da vela que queima na solidão
silenciosa, sem se deixar perturbar pela loucura barulhenta e
apressada dos homens de ação e sucesso; sob a luz da vela, no gozo
da tranquilidade solitária, acordar o poeta que dorme em nós. O que
não é garantia de felicidade. Mas é garantia de beleza e de
serenidade. E que coisa mais pode alguém desejar receber como
herança?
Rubem Alves, in Se eu pudesse
viver minha vida novamente
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