sábado, 4 de novembro de 2017

Homem, intentada viagem

Por exemplo: José Osvaldo.
O qual foi um brasileiro, a-histórico e desvalido, nas épocas de 39 ou 38, a perambular pela Europa para-a-guerra, híspida de espaventos. Veio a Hamburgo. Trazia-o uma comunicação do nosso Cônsul em Viena: “Não tem passaporte nem título de identidade e diz já ter sido repatriado duas vezes por esse Consulado-Geral. Deve haver aí algum papel, que o refira.”
E como de feito: achado que, pela terceira vez, no pouco de três anos, revia-se aqui, na estrangeiria e na máxima lástima, contando com que de novo o mandássemos para casa. Veterano, de disparatada veterância, coisa tão dessemelhada. Ele era corado, baixo, iria nos trinta anos. O bem-encarado, bem-avindo, sem semblante de bobático, sem sentir-se de sua situação, antes todo feito para imperturbar-se. Cumpria-se em serenidade fresca, expedindo uma paz, muito coada, propríssima. A uns, pareceu-nos algo nortista, a outros um tanto mineiro; bem alguma espécie. Nisso, e mais, por enquanto, não falava. Fora-se-lhe o último pfennig, do que Moreira da Silva em Viena lhe ministrara, no bolso nem tusta. Levava porém roupa asseada e não amarrotada inexplicadamente, e até com no peito uma flor, dessas de si semi-secas, sempre-viva. Assim bem-trapilho, um rico diabo. Mas, lil, lilil, pelo Evangelho, quase lilial que nem os lírios do campo, jovializava.
Tinha-se, em autoridade consular, de chefiar-lhe a ida, na sexta-feira, pelo navio da linha regular da Hamburg-Süd, que partia para o Brasil, gozando da “regalia de paquete” e, então, com a regra de conduzir repatriados. Era só requisitar-se a passagem. Estávamos, porém, em começo de semana, tendo o José Osvaldo de esperar os quatro dias. Com quantia mínima que recebeu, para comida e cama em albergue, deu-se por socorrido magnificamente. Ele em enleio de problemas não se retardava.
Nesse tempo, não deixou de vir passá-lo, o inteiro possível, no Consulado — de abertura a fechamento — bem se dava a ver um viajante desprovido de curiosidade. Comparecia, sentado no banco, no compartimento do público, junto ao balcão que separava a sala-grande, onde os Auxiliares trabalhavam. Olhava-os, quieto, brejeiro às vezes, com sorrisos seriosos. Falava língua nenhuma, jejuava em tudo. Seu fluido, neutro, não incomodava. Frequentava ali, como se, em lugar do interior, em porta de farmácia: o aspecto e atitude desmentindo as linhas tortas de seu procedimento. Não seria louco, a não ser da básica e normal doideira humana, a metafisicamente dita. Valeria, sim, saber-se o grau virtual de sua aloprabilidade. A gente nem tem ideia de como, por debaixo dos enredos da vida, talvez se esteja é somente e sempre buscando conseguir-se no sulco pessoal do próprio destino, que é naturalmente encoberto; e, se acaso, por breve trecho e a-de-leve, se entremostra, então aturde, por parecer gratuito absurdo e sem-razão. Convém ver. Só raros casos puros, aliás, abrem-nos aqui um pouco os olhos.
Notavelmente, o de Zé Osvaldo. Não é dizer fosse um raso vezeiro vagamundo, por ânimo de vadiação e hábito de irrealidade, atreito às formas da aventura. Outra a sua famigeração e círculo de motivos: sujeito a um rumo incondicional, à aproximação de outro tempo, projeto de vastidão, e mais que se pense; propósito de natureza — a crer-se em sua palavra. E o saberia? Sem efeito, que é que a gente conhece, de si mesmo, em verdade? Nem pretendia explicar-se, certo a certo, em quando respondia a umas perguntas, ali, observado entre lente e lâmina, sentado no banco, no faz-nada. Comum como uma terça-feira, otimista como um pau de cerca, risonho como um boi no Egito, indefeso como um pingo d’água sozinho, desmemoriado como um espelho. Dava trabalho, retrilhar-lhe as pegadas.
Sua cidade, o Rio. Não tinha ninguém. Tinha aquilo, que lhe vinha repetidamente sempre, tântalas vezes: a necessidade de partir e longinquir, se exportar, exairar-se, sem escopo, à lontania, às penúltimas plagas. Apenas não a simples veleidade de fugir ao normal, à lengalenga lógica, para espraiar cuidados, uma maneira prática de quimerizar. Mas, o que se mostrava a princípio exigência pacífica, ia-se tornando energia enorme de direção, futurativa, distanciânsia — a fome espacial dos sufocados. Então, se metia num navio, fizera já assim em quantas ocasiões. Voltara toda-a-vida à Europa: fora repatriado em Hamburgo, Trieste, Helsinque, Bordéus e Antuérpia. Ia-se, ao grande léu, como os tantos outros de sua abstrata raça, em íntimo intimados a seguir derrota, ignorantes de seu clandestino.
Por começo, engajara-se sem formalidades em vapores gregos ou panamenhos, como trabalhador de bordo, viajava de forasta. Mas era um ser pegado com a terra, no enxuto, não-marinheiro, nem tinha tatuagem. Pojavam em longe porto, ele se escapava. Agora, por último, nem mais se alistava: subintrava-se a bordo, sorrelfo às ocultas, com justeza matemática, sem isso nem isso, quer-se o que se quer, penetrava. O mar era-lhe apenas o meio de trajeção, seu instrumento incerto, distância que palpita. O mar, que faz lonjura. Ele era sempre da outra margem.
De suas artes em terra, não se tirariam marábulas, matéria de contos arábicos. Só — a licença aberta, a abstância e percorrência, o girogirar, o vagar a ver. Sempre a outros ultras, perléguas: itivo e latitudinário, paraginoso, na mal-entendida viagem, todo através-de. Até o desvaler-se de vez e miserar-se, e pôr ponto. Aí, caía num Consulado, socorria-se de seguridade, davam-lhe a repatriação.
Vago, vivo Zé Osvaldo, entre que confusas, em-sombras forças mediava, severas causas? Contou-nos os sucessivos episódios do que se lhe dera, de ingentes turlupinadas e estradas, desta vinda e feita.
Descido em Gênova, fora-se adentro, como sempre, trotamundo e alheio. Apanhou-o a polícia italiana. Mas não sabiam com ele o que resolver, a falta de documentos empalhando qualquer processo de expulsão. Deram-no à guarda da fronteira, que o levou, de noite, à beirada da Iugoslávia, e traspassaram-no para lá, de sorrate — subterfugido. Parece que o costume era obrarem às vezes desse jeito, naquelas partes. Porque, depois, os da polícia iugoslava fizeram-no para o lado-de-lá húngaro, também de noite e escondidamente, sob carabinas. Pego pelos húngaros, contrabandearam-no de novo para a Iugoslávia. Idem, os iugoslavos abalançando-o outra vez para a Hungria. E os húngaros, afinal, para a Áustria. Mas, por aí, já ele se aborrecera de tanto ser revirado transfronteiras. Antes que outros saíssem-lhe por diante para apajeá-lo, tratou de enviar-se a Viena, como pôde.
Simples gracejo, perguntamo-lhe: por que não tentava pôr por obra, aqui, sua arte de astuto, introduzindo-se à socapa num dos navios surtos no porto, a zarpar para o Rio? Seja por brio de esportividade, ou fosse por concordância ingênua, isso o botou influído. Por todo o dia, desapareceu. Mas, quando voltou, no seguinte, foi para confessar seu malogro, com igual sossego. Estivera no porto, no ver a ver. Achara navio a valer, mais de um. Mas o esforço não provou bem, a vigilância ali era um a-fio.
Segue-se que enfim partiu, na sexta. Sumária foi sua expedição. Não tinha bagagem, nem mesmo pacotilha. Sumiu-se, liso e recontente, o sorriso sem defeito, na lapela a sempre-viva. Ninguém se lembrou de dar-lhe algum dinheiro, só se pensou nisso tarde, já despachado o navio; com o atropelo de divertimentos e trabalhos, a gente não só negligencia, mas mesmo negligeia e neglige. Agora, já se estaria longe, navegantibundo, a descer o Elba, a entrar do Mar do Norte.
Mas, na outra manhã, cobrava-nos a Hamburg-Süd a importância de dez marcos, a ele favorecidos contra recibo tosco a lápis, e em termos de “esta requisição”. O desenvolvido Zeosvaldo, capaz e calmo, sabendo fazer de si, servidamente! E não ia voltar — como o entanto, o vento, a ave?
Sim que, anos depois, realmente retornou à Europa, não lhe puderam tolher a empresa. De novo, também, foi repatriado, para a epilogação. O nada acontece muitas vezes. Assim — na entrada da Guanabara — sabe-se que ele se atirou de bordo; perturbado? Acabou por começar. Isto é, rematou em nem-que-quando, zeosvaldo, mar abaixo, na caudalosa morte. Só morreu, com as coisas todas que não soubesse.
Inconseguiu-se?
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

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