Por exemplo: José
Osvaldo.
O qual foi um
brasileiro, a-histórico e desvalido, nas épocas de 39 ou 38, a
perambular pela Europa para-a-guerra, híspida de espaventos. Veio a
Hamburgo. Trazia-o uma comunicação do nosso Cônsul em Viena: “Não
tem passaporte nem título de identidade e diz já ter sido
repatriado duas vezes por esse Consulado-Geral. Deve haver aí algum
papel, que o refira.”
E como de feito:
achado que, pela terceira vez, no pouco de três anos, revia-se aqui,
na estrangeiria e na máxima lástima, contando com que de novo o
mandássemos para casa. Veterano, de disparatada veterância, coisa
tão dessemelhada. Ele era corado, baixo, iria nos trinta anos. O
bem-encarado, bem-avindo, sem semblante de bobático, sem sentir-se
de sua situação, antes todo feito para imperturbar-se. Cumpria-se
em serenidade fresca, expedindo uma paz, muito coada, propríssima. A
uns, pareceu-nos algo nortista, a outros um tanto mineiro; bem alguma
espécie. Nisso, e mais, por enquanto, não falava. Fora-se-lhe o
último pfennig, do que Moreira da Silva em Viena lhe
ministrara, no bolso nem tusta. Levava porém roupa asseada e não
amarrotada inexplicadamente, e até com no peito uma flor, dessas de
si semi-secas, sempre-viva. Assim bem-trapilho, um rico diabo. Mas,
lil, lilil, pelo Evangelho, quase lilial que nem os lírios do campo,
jovializava.
Tinha-se, em
autoridade consular, de chefiar-lhe a ida, na sexta-feira, pelo navio
da linha regular da Hamburg-Süd, que partia para o Brasil, gozando
da “regalia de paquete” e, então, com a regra de conduzir
repatriados. Era só requisitar-se a passagem. Estávamos, porém, em
começo de semana, tendo o José Osvaldo de esperar os quatro dias.
Com quantia mínima que recebeu, para comida e cama em albergue,
deu-se por socorrido magnificamente. Ele em enleio de problemas não
se retardava.
Nesse tempo, não
deixou de vir passá-lo, o inteiro possível, no Consulado — de
abertura a fechamento — bem se dava a ver um viajante desprovido de
curiosidade. Comparecia, sentado no banco, no compartimento do
público, junto ao balcão que separava a sala-grande, onde os
Auxiliares trabalhavam. Olhava-os, quieto, brejeiro às vezes, com
sorrisos seriosos. Falava língua nenhuma, jejuava em tudo. Seu
fluido, neutro, não incomodava. Frequentava ali, como se, em lugar
do interior, em porta de farmácia: o aspecto e atitude desmentindo
as linhas tortas de seu procedimento. Não seria louco, a não ser da
básica e normal doideira humana, a metafisicamente dita. Valeria,
sim, saber-se o grau virtual de sua aloprabilidade. A gente nem tem
ideia de como, por debaixo dos enredos da vida, talvez se esteja é
somente e sempre buscando conseguir-se no sulco pessoal do próprio
destino, que é naturalmente encoberto; e, se acaso, por breve trecho
e a-de-leve, se entremostra, então aturde, por parecer gratuito
absurdo e sem-razão. Convém ver. Só raros casos puros, aliás,
abrem-nos aqui um pouco os olhos.
Notavelmente, o de
Zé Osvaldo. Não é dizer fosse um raso vezeiro vagamundo, por ânimo
de vadiação e hábito de irrealidade, atreito às formas da
aventura. Outra a sua famigeração e círculo de motivos: sujeito a
um rumo incondicional, à aproximação de outro tempo, projeto de
vastidão, e mais que se pense; propósito de natureza — a crer-se
em sua palavra. E o saberia? Sem efeito, que é que a gente conhece,
de si mesmo, em verdade? Nem pretendia explicar-se, certo a certo, em
quando respondia a umas perguntas, ali, observado entre lente e
lâmina, sentado no banco, no faz-nada. Comum como uma terça-feira,
otimista como um pau de cerca, risonho como um boi no Egito, indefeso
como um pingo d’água sozinho, desmemoriado como um espelho. Dava
trabalho, retrilhar-lhe as pegadas.
Sua cidade, o Rio.
Não tinha ninguém. Tinha aquilo, que lhe vinha repetidamente
sempre, tântalas vezes: a necessidade de partir e longinquir, se
exportar, exairar-se, sem escopo, à lontania, às penúltimas
plagas. Apenas não a simples veleidade de fugir ao normal, à
lengalenga lógica, para espraiar cuidados, uma maneira prática de
quimerizar. Mas, o que se mostrava a princípio exigência pacífica,
ia-se tornando energia enorme de direção, futurativa, distanciânsia
— a fome espacial dos sufocados. Então, se metia num navio, fizera
já assim em quantas ocasiões. Voltara toda-a-vida à Europa: fora
repatriado em Hamburgo, Trieste, Helsinque, Bordéus e Antuérpia.
Ia-se, ao grande léu, como os tantos outros de sua abstrata raça,
em íntimo intimados a seguir derrota, ignorantes de seu clandestino.
Por começo,
engajara-se sem formalidades em vapores gregos ou panamenhos, como
trabalhador de bordo, viajava de forasta. Mas era um ser pegado com a
terra, no enxuto, não-marinheiro, nem tinha tatuagem. Pojavam em
longe porto, ele se escapava. Agora, por último, nem mais se
alistava: subintrava-se a bordo, sorrelfo às ocultas, com justeza
matemática, sem isso nem isso, quer-se o que se quer, penetrava. O
mar era-lhe apenas o meio de trajeção, seu instrumento incerto,
distância que palpita. O mar, que faz lonjura. Ele era sempre da
outra margem.
De suas artes em
terra, não se tirariam marábulas, matéria de contos arábicos. Só
— a licença aberta, a abstância e percorrência, o girogirar, o
vagar a ver. Sempre a outros ultras, perléguas: itivo e
latitudinário, paraginoso, na mal-entendida viagem, todo através-de.
Até o desvaler-se de vez e miserar-se, e pôr ponto. Aí, caía num
Consulado, socorria-se de seguridade, davam-lhe a repatriação.
Vago, vivo Zé
Osvaldo, entre que confusas, em-sombras forças mediava, severas
causas? Contou-nos os sucessivos episódios do que se lhe dera, de
ingentes turlupinadas e estradas, desta vinda e feita.
Descido em Gênova,
fora-se adentro, como sempre, trotamundo e alheio. Apanhou-o a
polícia italiana. Mas não sabiam com ele o que resolver, a falta de
documentos empalhando qualquer processo de expulsão. Deram-no à
guarda da fronteira, que o levou, de noite, à beirada da Iugoslávia,
e traspassaram-no para lá, de sorrate — subterfugido. Parece que o
costume era obrarem às vezes desse jeito, naquelas partes. Porque,
depois, os da polícia iugoslava fizeram-no para o lado-de-lá
húngaro, também de noite e escondidamente, sob carabinas. Pego
pelos húngaros, contrabandearam-no de novo para a Iugoslávia. Idem,
os iugoslavos abalançando-o outra vez para a Hungria. E os húngaros,
afinal, para a Áustria. Mas, por aí, já ele se aborrecera de tanto
ser revirado transfronteiras. Antes que outros saíssem-lhe por
diante para apajeá-lo, tratou de enviar-se a Viena, como pôde.
Simples gracejo,
perguntamo-lhe: por que não tentava pôr por obra, aqui, sua arte de
astuto, introduzindo-se à socapa num dos navios surtos no porto, a
zarpar para o Rio? Seja por brio de esportividade, ou fosse por
concordância ingênua, isso o botou influído. Por todo o dia,
desapareceu. Mas, quando voltou, no seguinte, foi para confessar seu
malogro, com igual sossego. Estivera no porto, no ver a ver. Achara
navio a valer, mais de um. Mas o esforço não provou bem, a
vigilância ali era um a-fio.
Segue-se que enfim
partiu, na sexta. Sumária foi sua expedição. Não tinha bagagem,
nem mesmo pacotilha. Sumiu-se, liso e recontente, o sorriso sem
defeito, na lapela a sempre-viva. Ninguém se lembrou de dar-lhe
algum dinheiro, só se pensou nisso tarde, já despachado o navio;
com o atropelo de divertimentos e trabalhos, a gente não só
negligencia, mas mesmo negligeia e neglige. Agora, já se estaria
longe, navegantibundo, a descer o Elba, a entrar do Mar do Norte.
Mas, na outra
manhã, cobrava-nos a Hamburg-Süd a importância de dez marcos, a
ele favorecidos contra recibo tosco a lápis, e em termos de “esta
requisição”. O desenvolvido Zeosvaldo, capaz e calmo, sabendo
fazer de si, servidamente! E não ia voltar — como o entanto, o
vento, a ave?
Sim que, anos
depois, realmente retornou à Europa, não lhe puderam tolher a
empresa. De novo, também, foi repatriado, para a epilogação. O
nada acontece muitas vezes. Assim — na entrada da Guanabara —
sabe-se que ele se atirou de bordo; perturbado? Acabou por começar.
Isto é, rematou em nem-que-quando, zeosvaldo, mar abaixo, na
caudalosa morte. Só morreu, com as coisas todas que não soubesse.
Inconseguiu-se?
Guimarães
Rosa, in Ave, palavra
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