domingo, 5 de novembro de 2017

A verdade e o tempo

A relação das verdades com o tempo não é positiva, mas negativa, é um simples não ter que ver com o tempo em nenhum sentido, é ser por completo alheias a toda a qualificação temporal, é manter-se rigorosamente anacrônicas. Dizer, pois, que as verdades o são sempre não envolve, falando de modo rigoroso, menor impropriedade que se dissermos - para usar uma famoso exemplo trazido por Leibniz a outro propósito -, “justiça verde”. O corpo ideal da justiça não oferece um encaixe nem um orifício onde possa enganchar-se o atributo “verdosidade”, e todas as vezes em que pretendamos inseri-lo naquele, outras tantas o veremos resvalar sobre a justiça - como sobre uma área polida. A nossa vontade de unir estes dois conceitos fracassa, e, ao dizê-los juntos, permanecem obstinadamente separados, sem possível adesão nem conjugação. Não existe, pois, heterogeneidade maior que a que existe entre o modo de ser atemporal constituitivo das verdades e o modo de ser temporal do sujeito humano que as descobre e pensa, conhece ou ignora, rejeita ou esquece.
Se, não obstante, usamos essa maneira de dizer - “as verdades são-no sempre” -, é porque praticamente isto não leva a consequências errôneas: é um erro inocente e cômodo. Graças a ele, olhamos esse estranho modo de ser que as verdades gozam sob a perspectiva temporal em que nos é habitual olhar as coisas do nosso mundo. Ao fim e ao cabo, dizer de alguma coisa que é sempre o que é equivale a afirmar a sua independência das variações temporais, a sua invulnerabilidade. É, pois, dentro do temporal, o carácter que mais se parece com a pura intemporalidade - é uma quase-forma de intemporalidade, a species quaedam aeternitatis.
Ortega y Gasset, in O que é a Filosofia?

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