quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Fantasmas dos vivos

O que trato, fora o título, não tem relação com o estudo de Gurney, Myers & Podmore. Ocorreu apenas que, ontem, eu não obtendo dormir e estando em passo de menos saúde, e uivando-me às paredes um vento abissal, que restituía meu espírito ancestralmente ao oceano, entrei a pensar, do modo mais ininquieto que podia, na vulta pessoa do meu amigo Marduque, com quem estes dias tenho conversado, sempre que evitá-lo não consigo.
Sei ao que me exponho, se assim começo, dando-me por desleal ou deslavado. O caso é que sou amigo de Marduque. Julgar, seja a quem for, é sempre péssimo; pepérrimo, então, julgar um amigo. Mas mesmo por isso é que preciso de de sua figura esquivar-me. Pronto me explico; isto é, sigam-me. O assunto não é de prólogo, mas de epílogo.
Antes de antes, direi que já me tinham vindo análogas experiências.
Respeito a Nulano, por exemplo, perto de quem tive de viver, há algum tempo. Pois Nulano, que merecia assaz, homem exemplarmente às perfeitas, nele havia, por detrás de tudo, sei lá onde, alguma coisa que irradiava, hostil e repulsiva. Não atino como a captei, mas senti-a logo. Uma coisa negra. Não o negror celerado, mas o negrume sinistro. Sua honesta presença me assustava. Sobretudo era preciso não pensar nele. Outromodo, porém, me acusava eu de injusto e fantasioso. E só pude tornar a bom sossego com os meus anjos no dia em que se deu a triangulação comprovadora. Isto quando Quetrano, conhecendo Nulano apenas de meia-hora, sem mais, disse-me: — “Nesse homem há qualquer coisa que cheira a casa com cadáver... Ele espalha um frio...”
Valha que para com o meu amigo Marduque o travo é outro, jamais se viu atra tarja em seu espectro anímico. Bem moço e aposto, ninguém o desfaz de pessoa cabibilíssima. Nem ser seu amigo pesa em demasia.
Mas, já uma vez, de início, faz épocas, quando ele me falava excelente de coisas excelentes, conforme praticam as criaturas, eis comecei a só perceber, sob forma de impacto, um seu intimíssimo tumulto, muito incômodo. Assim não ignoro que, modo mais leve, o fenômeno seja quase geral. “Ninguém engana ninguém” — admito. E penso que Emerson foi quem observou: “O que Você é grita tanto, que não me deixa escutar o que Você diz...” Mas certo vem que dali saí com Marduque um tanto transversalmente.
Ponderei-me tudo não passasse de impressão equivocada, maus olhos meus ou desfígado, volúveis vagas circunstâncias. Surge, porém, que, sem ceitil de desestimá-lo, comecei a sentir a urgente e defensiva precisão de não pensar nele. Quando digo pensar, digo o pensamento por imagem, visualização, essa espécie nossa de cinematográfica lembrança, já perceberam. Pois — ora círculos! — tratando-se de um amigo, seria operação decente desligar assim o seu retrato, bani-lo em efígie tão sumariamente? Não, decerto não — disse-me, disse. E, solução intermédia, acudiu-me então: poder pensar Marduque, mas... Marduque com um turbante na cabeça...
Falta-me saber donde me veio tal ideia, já que é de fora que as ideias nos vêm. Mas o turbante, ora amarelo, ora branco, e de muito pano, logo se completou: com uma roupagem bíblica, a revestir Marduque. Juro que nunca o vira em traje mais assentado; era a sua adequada indumentária. Perdera a absconsa temibilidade, e estava em meu poder mantê-lo prisioneiro, o tempo que necessário fosse, assim mascarado, ou melhor, desmascarado, como personagem de sinédrio ou coruscante fariseu. Ri-me, mil. E disso, por diante, tirei remédio. A cada vez que pressentia, em presença ou à distância, aquele seu oculto sacolejar sulfúrico, bastava-me impor-lhe o turbante. Ele de nada desconfiava, e desse modo pude sustentar ilesa a nossa amizade, por tantos anos. Mas ajeitei-lhe coifa, muitíssimas, muitas vezes, toucando-o, e chegando a desenvolver razoável a técnica de turbantizar.
Mas irrompeu que, há cerca de semana, meu amigo Magnomuscário foi apresentado a meu amigo Marduque. Meu amigo Magnomuscário para bem compreendido, saiba-se que ele é uma espécie de iogue swedenborguiano, gente que tudo muito vê, transvê, não se deixando ilusionar pela grossa aparência do nosso mundo objetivado.
Cruz, bem, Magnomuscário, que, até ao momento, de Marduque tudo ignorava, revelou-me, logo seja, que vezes raras, haveria encontrado caso tão instrutivo. Mais não querendo explicar-me, porquanto os de sua filosofia ou seita costumam viver “sub rosa” — como diziam os romanos, a rosa símbolo da secretividade absoluta. Apenas, e como eu muito insistisse, acrescentou, com gesto de apalpar melão ou abóbora:
— “...como Caifaz... Podia usar um turbante...”
Vai, calculem meu choque, o soturno estarrecimento em que me debato té hoje. Três vezes, depois, estive com Marduque, e agora, o que é descrível, noto que desconfia de mim, de maneira recrescente. Qualquer olho, dele, do fundo, me espreita. E alcança ler um tanto dos meus defesos pensamentos. Tive luz disso, por último, ao tentar repor-lhe a cobertura: subitamente inquieto, ficou a passar mão pela cabeça. É uma agonia. Preciso de me distanciar de Marduque, fugir dele. Ou escrever, pedindo urgente conselho, a Magnomuscário, que mora longe, no interior do exterior, com seu expeditório de profundaltíssimas ciências.
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

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