O
que trato, fora o título, não tem relação com o estudo de Gurney,
Myers & Podmore. Ocorreu apenas que, ontem, eu não obtendo
dormir e estando em passo de menos saúde, e uivando-me às paredes
um vento abissal, que restituía meu espírito ancestralmente ao
oceano, entrei a pensar, do modo mais ininquieto que podia, na vulta
pessoa do meu amigo Marduque, com quem estes dias tenho conversado,
sempre que evitá-lo não consigo.
Sei
ao que me exponho, se assim começo, dando-me por desleal ou
deslavado. O caso é que sou amigo de Marduque. Julgar, seja a quem
for, é sempre péssimo; pepérrimo, então, julgar um amigo. Mas
mesmo por isso é que preciso de de sua figura esquivar-me. Pronto me
explico; isto é, sigam-me. O assunto não é de prólogo, mas de
epílogo.
Antes
de antes, direi que já me tinham vindo análogas experiências.
Respeito
a Nulano, por exemplo, perto de quem tive de viver, há algum tempo.
Pois Nulano, que merecia assaz, homem exemplarmente às perfeitas,
nele havia, por detrás de tudo, sei lá onde, alguma coisa que
irradiava, hostil e repulsiva. Não atino como a captei, mas senti-a
logo. Uma coisa
negra. Não o negror celerado, mas o negrume sinistro. Sua honesta
presença me assustava. Sobretudo
era preciso não pensar nele.
Outromodo, porém, me acusava eu de injusto e fantasioso. E só pude
tornar a bom sossego com os meus anjos no dia em que se deu a
triangulação comprovadora. Isto quando Quetrano, conhecendo Nulano
apenas de meia-hora, sem mais, disse-me: — “Nesse homem há
qualquer coisa que cheira a casa com cadáver... Ele espalha um
frio...”
Valha
que para com o meu amigo Marduque o travo é outro, jamais se viu
atra tarja em seu espectro anímico. Bem moço e aposto, ninguém o
desfaz de pessoa cabibilíssima. Nem ser seu amigo pesa em demasia.
Mas,
já uma vez, de início, faz épocas, quando ele me falava excelente
de coisas excelentes, conforme praticam as criaturas, eis comecei a
só perceber, sob forma de impacto, um seu intimíssimo tumulto,
muito incômodo. Assim não ignoro que, modo mais leve, o fenômeno
seja quase geral. “Ninguém engana ninguém” — admito. E penso
que Emerson foi quem observou: “O que Você é grita tanto, que não
me deixa escutar o que Você diz...” Mas certo vem que dali saí
com Marduque um tanto transversalmente.
Ponderei-me
tudo não passasse de impressão equivocada, maus olhos meus ou
desfígado, volúveis vagas circunstâncias. Surge, porém, que, sem
ceitil de desestimá-lo, comecei a sentir a urgente
e defensiva precisão de não pensar nele.
Quando digo pensar, digo o pensamento por imagem, visualização,
essa espécie nossa de cinematográfica lembrança, já perceberam.
Pois — ora círculos! — tratando-se de um amigo, seria operação
decente desligar assim o seu retrato, bani-lo em efígie tão
sumariamente? Não, decerto não — disse-me, disse. E, solução
intermédia, acudiu-me então: poder pensar
Marduque, mas... Marduque com um turbante na cabeça...
Falta-me
saber donde me veio tal ideia, já que é de fora que as ideias nos
vêm. Mas o turbante, ora amarelo, ora branco, e de muito pano, logo
se completou: com uma roupagem bíblica, a revestir Marduque. Juro
que nunca o vira em traje mais assentado; era a sua adequada
indumentária. Perdera a absconsa temibilidade, e estava em meu poder
mantê-lo prisioneiro, o tempo que necessário fosse, assim
mascarado, ou melhor, desmascarado, como personagem de sinédrio ou
coruscante fariseu. Ri-me, mil. E disso, por diante, tirei remédio.
A cada vez que pressentia, em presença ou à distância, aquele seu
oculto sacolejar sulfúrico, bastava-me impor-lhe o turbante. Ele de
nada desconfiava, e desse modo pude sustentar ilesa a nossa amizade,
por tantos anos. Mas ajeitei-lhe coifa, muitíssimas, muitas vezes,
toucando-o, e chegando a desenvolver razoável a técnica de
turbantizar.
Mas
irrompeu que, há cerca de semana, meu amigo Magnomuscário foi
apresentado a meu amigo Marduque. Meu amigo Magnomuscário para bem
compreendido, saiba-se que ele é uma espécie de iogue
swedenborguiano, gente que tudo muito vê, transvê, não se deixando
ilusionar pela grossa aparência do nosso mundo objetivado.
Cruz,
bem, Magnomuscário, que, até ao momento, de Marduque tudo ignorava,
revelou-me, logo seja, que vezes raras, haveria encontrado caso tão
instrutivo. Mais não querendo explicar-me, porquanto os de sua
filosofia ou seita costumam viver “sub rosa” — como diziam os
romanos, a rosa símbolo da secretividade absoluta. Apenas, e como eu
muito insistisse, acrescentou, com gesto de apalpar melão ou
abóbora:
—
“...como
Caifaz... Podia usar um turbante...”
Vai,
calculem meu choque, o soturno estarrecimento em que me debato té
hoje. Três vezes, depois, estive com Marduque, e agora, o que é
descrível, noto que desconfia de mim, de maneira recrescente.
Qualquer olho, dele, do fundo, me espreita. E alcança ler um tanto
dos meus defesos pensamentos. Tive luz disso, por último, ao tentar
repor-lhe a cobertura: subitamente inquieto, ficou a passar mão pela
cabeça. É uma agonia. Preciso de me distanciar de Marduque, fugir
dele. Ou escrever, pedindo urgente conselho, a Magnomuscário, que
mora longe, no interior do exterior, com seu expeditório de
profundaltíssimas ciências.
Guimarães
Rosa,
in Ave,
palavra
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