sexta-feira, 7 de julho de 2017

Eles chegaram

Eles chegaram e tudo ficou vermelho, desde o céu em cima da gente até o chão embaixo dos pés, a poeira que eles levantaram. E não era um vermelho qualquer, nem vermelho de flor ordinária, dessas que nascem em toda ramagem, nem vermelho do sol que vai se pondo e esmaecendo em outras cores, laranja, amarelo. Era um vermelho daqueles que sangram. Eu já vi muito bicho sangrar. E eu sei como é. E aquela poeira que eles levantaram no dia em que chegaram era esse sangue, esse pó de sangue, que ora se ajuntava, concentrado, ora se espalhava se agarrando a tudo, essa nuvem.
Eles eram seis, cinco homens e uma mulher, e os cabelos brancos dela, uma coisa de meter medo. Cabelos que rodopiavam. Lembro que foi a primeira imagem que me encheu de medo. Como era possível que tivesse cabelos de velha se velha não era? Eu não sabia. Mas sempre soube que eles não eram de perto, da vila, dos sítios vizinhos. Suas caras, seus corpos, seus jeitos de vestir e de falar pareciam de muito longe, de um lugar que caminhava junto com eles. Certo que fui poucas vezes ao povoado, e nessas ocasiões nosso pai sempre se mostrava contrariado de que eu desobedecesse à ordem de não levantar a cabeça, de não chamar a atenção dos outros, mas tudo eu olhava bem olhado, de sobrolho que fosse, porque existir era olhar e porque eu queria aprender tudo o que fosse diferente. E eu aprendo depressa. Muito depressa.
Quando nossa mãe e nosso pai ouviram o trovão da porta caindo aos nossos pés, já era tarde, tarde demais. Nosso pai não teve nem tempo. Um dos homens foi logo passando a lâmina do facão em pescoço de nossa mãe e ela caiu de joelhos sobre o próprio corpo sem que tenha dado um grito sequer, seu sangue jorrando como o leite que sobe na panela e logo coagula, aquela nata. Cabeça rolando para um lado, os olhos saltados para fora e bonc!
Ontem mesmo eu acordei no meio da noite e achei que havia escutado de novo o barulho da cabeça caindo. Isso acontece muitas vezes, acontecia mais antes, no tempo de ser pequeno, mas é um ruído que não me deixa, que não esquece de mim. Às vezes é tratável, abafado, e o susto me faz apenas abrir os olhos. Mas há noites em que vem como um estrondo e restruge como se caísse a trempe de panelas ou como um trovão que ricocheteia morro após morro. Quando é assim, eu acordo saltado, num pulo que me deixa ossos e carne inteira rija, as veias todas saltando por debaixo da pele. Eu não gosto. Mas acontece.
Nosso pai também não gritou. Rangia dentes e torcia olhos. Segurado pelos homens, ele pôs nele mesmo um jeito de ser tão duro, que quem o visse acharia que era de morte aquela dureza toda, uma armadura. Mas morto ele não estava. Talvez com raiva, talvez apavorado. Quando acordo no meio da noite pelo trovão da cabeça de mãe, é pai quem se apodera de mim, a mesma couraça, semelhante madeiramento. Não que eu já tivesse visto pai apavorado. Com raiva, sim. Mas apavorado, nunca.
Morávamos nos Gritos. E morar ali, era morar perto do fim do mundo. E morar perto do fim do mundo é morar longe, perto de nada, numa terra sem país. E nos Gritos havia a nossa casa, o grande tamboril no terreiro e uma vastidão de nada vestida de um verde ralé, verde cinzento, que não se atrevia a crescer contínuo em direção ao céu, verde de mato ralo, de poucas árvores espaçadas umas das outras, sem dar forma a qualquer floresta. Só quem já morou nos Gritos sabe o que é viver numa terra sem país. De vizinho, só um velho fardado, que morava umas seis léguas distante, vestido de uniforme de combate o tempo todo, sob sol a pino ou chuva que caísse, ele de uniforme, com sua cara de louco, só ele e um filho aleijado de braços e pernas. De resto, chão e céu, e a paisagem.
Isso era o comum.
A gente é o povo dos Gritos, dizia nossa mãe insistente, quando se dava a falar. Às vezes, ela chorava. Quando nosso pai sumia de tempos em tempos e ela ficava lá naquela espera enorme dela, enfiada naquela solidão sua, ela se aquietava. Mas é certo que ela se fazia mais triste e mais chorava quando ele chegava de volta, sua lamúria escondida no vestido, no braço que se torcia para enxugar lágrima e ranho.
O incomum foi aquilo.
Mãe morta, pai debaixo dos pés dos outros e os gritos meus e do meu irmão sendo arrastados para fora da casa. No terreiro, mijados de medo, ficamos mudos, como que combinados de silêncio, não porque tivéssemos a sorte da mudez de nossa mãe ou da indignação calada do nosso pai ou ainda por possuirmos qualquer coragem, mas talvez porque ver nossa mãe ali, morta, e nosso pai pisado, tenha nos feito engolir a fala, como quando eu caí de costas da árvore e até quis gritar, mas não pude, minha voz presa na caixa do peito me impedindo de chamar por quem me acudisse.
O medo da morte fede a mijo. Foi uma coisa que aprendi aquele dia.
No pátio, a mulher me empurrou para cima de um dos homens com tanta ignorância que um dente meu quebrou ao bater na arma dele.
Cadela!
Enquanto isso, ela foi vasculhando a cabeça do meu irmão procurando algo que não estava lá. Ao desistir dele, veio sobre mim, encontrando a cruz, duas saliências cruzadas escondidas entre os meus cabelos. Uma cruz. Era isso que ela procurava. Hoje eu sei que era isso, um sinal de morte. Mas antes eu não sabia.
Sobreviver pode ser um acidente ou uma arte. Eu, por mim, que já soube sobreviver das duas formas, aprendi que se valer da arte tem mais inteligência e verdade.
O meu, o que é meu, ela disse num esgar de dentes contra meu pai. O meu, o que é meu. E essa tua mulher aí, pasto de vermes, ponho também na tua contabilidade, ela disse. Que Deus a tenha, essa tua mulher, pobre Corália!
Eu nunca havia escutado ninguém falar como ela. Pasto de vermes. E quem falava assim com pai? Era o impensável. Mas o mais incrível é que nunca eu ou meu irmão saberíamos que nossa mãe tivesse um nome. Ela era mãe, e isso bastava. Mulher, na boca do nosso pai quando de bons ventos. Imprestável, cadela, latrina, quando assomado de ruindades. Nosso pai e nossa mãe eram de poucas conversas, de modo que até ali sabíamos quase nada das palavras. Grunhidos, gritos, pancadas. Comparado com hoje, sabíamos é um mundo muito pobre de palavras e gestos, só a nomeação das poucas coisas que nos cercavam. E não precisávamos de muito mais.
Micheliny Verunschk, in O peso do coração de um homem

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