sexta-feira, 14 de julho de 2017

A minha querência


Está querendo que eu acredite que o que matou você foi a sufocação, Juan Preciado? Eu encontrei você na praça, muito longe da casa de Donis, e comigo também estava ele, dizendo que você estava se fazendo de morto. Nós dois arrastamos você até a sombra do portal, já bem teso, retorcido daquele jeito em que morrem os que morrem mortos de medo. Se não tivesse havido ar para respirar naquela noite que você está falando, teriam faltado forças para que nós carregássemos você, quanto mais para enterrá-lo. Você está vendo, nós enterramos você.
Tem razão, Doroteo. Você disse que se chama Doroteo?
Dá na mesma. Só que meu nome é Dorotea. Mas dá na mesma.
Pois é verdade, Dorotea. Os murmúrios me mataram.
Lá você vai encontrar a minha querência. O lugar que eu amei. Onde os meus sonhos emagreceram. Meu povoado, levantado sobre a planície. Cheio de árvores e de folhas, como um cofre onde guardamos nossas memórias. Você vai sentir que ali a gente gostaria de viver para a eternidade. O amanhecer; a manhã; o meio-dia e a noite, sempre os mesmos; mas com a diferença do ar. Lá, onde o ar muda a cor das coisas; onde a vida se ventila como se fosse um murmúrio; como se fosse um puro murmúrio da vida...
Sim, Dorotea. Os murmúrios sussurrados me mataram. Embora eu trouxesse um medo atrasado. Tinha vindo se juntando, até que não aguentei mais. E quando me encontrei com os murmúrios minhas cordas arrebentaram.
Cheguei na praça, você tem razão. Fui levado até lá pelo alvoroço das gentes e achei que de verdade havia gente. Eu já não estava muito em meus eixos; recordo que vim me apoiando nas paredes como se caminhasse com as mãos. E os sussurros pareciam destilar das paredes, como se se filtrassem entre as gretas e os descascados abertos no reboco. Eu os ouvia. Eram vozes de gente; mas não vozes claras, e sim secretas, como se me murmurassem alguma coisa ao passar, ou como se zumbissem contra os meus ouvidos. Afastei-me das paredes e continuei pelo meio da rua; mas ouvia do mesmo jeito, do mesmo jeito que se estivessem vindo comigo, adiante ou atrás de mim. Não sentia calor, como disse antes; antes pelo contrário, sentia frio. Desde que saí da casa daquela mulher que me emprestou sua cama e que, como dizia, vi se desfazendo na água de seu suor, desde então fiquei com frio. E conforme eu andava, o frio aumentava mais e mais, até me deixar a pele toda arrepiada. Quis retroceder porque achei que voltando poderia encontrar o calor que eu tinha acabado de deixar; mas reparei, assim que comecei a andar, que o frio saía de mim, do meu próprio sangue. Então reconheci que estava assustado. Ouvi o alvoroço maior na praça e achei que ali, no meio das pessoas, o medo iria diminuir. Por isso é que vocês me encontraram na praça. Quer dizer então que Donis acabou voltando? A mulher tinha certeza de que jamais tornaria a vê-lo.
Já era de manhã quando encontramos você. Ele estava vindo sei lá de onde. Não perguntei.
Bem, então cheguei na praça. Encostei-me num pilar tios portais. Vi que não havia ninguém, embora continuasse ouvindo o burburinho como de muita gente em dia de feira. Um rumor parelho, sem tom nem som, parecido ao que o vento faz contra os galhos de uma árvore na noite, quando a gente não vê nem a árvore nem os galhos, mas ouve o seu farfalhar. Assim. Não dei mais nem um passo. Comecei a sentir que chegava perto de mim e dava voltas ao meu redor aquele zunzum apertado como de um enxame, até que consegui distinguir umas palavras quase vazias de ruído: “Rogai a Deus por nós.” Ouvi que era isso que me diziam. Então minha alma gelou. Foi por isso que vocês me acharam morto.
Teria sido melhor se você não tivesse saído da sua terra. O que veio fazer aqui?
Eu já disse no começo. Vim procurar Pedro Páramo, que ao que parece foi meu pai. Vim trazido pela ilusão.
Ilusão? Isso custa caro. A mim custou viver mais do que o devido. Paguei com isso a dívida de encontrar meu filho, que não foi, por assim dizer, nada além de uma ilusão a mais; porque nunca tive filho algum. Agora que estou morta me deu tempo para pensar e ficar sabendo de tudo. Nem mesmo o ninho para guardá-lo Deus me deu. Só esta longa vida arrastada que tive, levando daqui para lá meus olhos tristes que sempre olharam de viés, como buscando atrás das pessoas, suspeitando que alguém tivesse me escondido meu menino. E tudo por culpa do maldito sonho. Tive dois: um deles eu chamo de “bendito” e o outro de “maldito”. O primeiro foi o que me fez sonhar que tinha tido um filho. E, enquanto vivi, nunca deixei de acreditar que fosse de verdade; porque o senti entre meus braços, novinho, terno, cheio de boca e de olhos e de mãos; durante muito tempo conservei em meus dedos a impressão de seus olhos adormecidos e o palpitar de seu coração. Como não ia pensar que aquilo fosse verdade? Eu o levava comigo aonde quer que fosse, envolto no meu xale, e de repente o perdi. No céu me disseram que tinham se enganado comigo. Que tinham me dado um coração de mãe, mas um seio de uma qualquer. Esse foi o outro sonho que tive. Cheguei ao céu e fui ver se entre os anjos reconhecia a cara de meu filho. E nada. Todas as caras eram iguais, feitas com a mesma forma. Então perguntei. Um daqueles santos se aproximou de mim e, sem me dizer nada, afundou uma das mãos no meu estômago, como se a tivesse afundado num montão de cera. Ao tirá-la, mostrou algo assim como uma casca de noz: “Isto prova o que se demonstra.”
Você sabe como eles falam esquisito lá em cima; mas dá para entender. Quis dizer a eles que aquilo era só o meu estômago enrugado pela fome e pelo pouco que comi; mas outro daqueles santos me empurrou pelos ombros e me mostrou a porta de saída: ‘Vai descansar um pouco mais na terra, filha, e procure ser boa para que seu purgatório não seja tão longo.”
Esse foi o sonho ‘maldito’ que tive e do qual tirei a explicação de que nunca havia tido nenhum filho. Soube quando já era demasiado tarde, quando meu corpo tinha se desmedrado, quando a espinha saltou por cima da minha cabeça, quando já não podia caminhar. E de arremate, o povoado foi ficando solitário; todos tomaram caminho para outros rumos e com eles foi-se embora também a caridade da qual eu vivia. Então me sentei para esperar a morte. Depois que encontramos você, meus ossos se revolveram e ficaram quietos. ‘Ninguém me dará importância’, pensei. Sou uma coisa que não estorva ninguém. Você vê, nem mesmo roubei espaço aqui na terra. Fui enterrada na mesma sepultura que você e coube muito bem no oco dos seus braços. Aqui neste canto, onde você me vê agora. Só me ocorre que deveria ser eu que estivesse abraçando você. Está me ouvindo? Lá fora está chovendo. Você não sente o bater da chuva?
Sinto como se alguém caminhasse em cima de nós.
Deixe de ter medo. Ninguém mais pode botar medo em você. Trate de pensar em coisas agradáveis porque vamos estar muito tempo enterrados.
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

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