Está
querendo que eu acredite que o que matou você foi a sufocação,
Juan Preciado? Eu encontrei você na praça, muito longe da casa de
Donis, e comigo também estava ele, dizendo que você estava se
fazendo de morto. Nós dois arrastamos você até a sombra do portal,
já bem teso, retorcido daquele jeito em que morrem os que morrem
mortos de medo. Se não tivesse havido ar para respirar naquela noite
que você está falando, teriam faltado forças para que nós
carregássemos você, quanto mais para enterrá-lo. Você está
vendo, nós enterramos você.
— Tem
razão, Doroteo. Você disse que se chama Doroteo?
— Dá
na mesma. Só que meu nome é Dorotea. Mas dá na mesma.
— Pois
é verdade, Dorotea. Os murmúrios me mataram.
Lá
você vai encontrar a minha querência. O lugar que eu amei. Onde os
meus sonhos emagreceram. Meu povoado, levantado sobre a planície.
Cheio de árvores e de folhas, como um cofre onde guardamos nossas
memórias. Você vai sentir que ali a gente gostaria de viver para a
eternidade. O amanhecer; a manhã; o meio-dia e a noite, sempre os
mesmos; mas com a diferença do ar. Lá, onde o ar muda a cor das
coisas; onde a vida se ventila como se fosse um murmúrio; como se
fosse um puro murmúrio da vida...
— Sim,
Dorotea. Os murmúrios sussurrados me mataram. Embora eu trouxesse um
medo atrasado. Tinha vindo se juntando, até que não aguentei mais.
E quando me encontrei com os murmúrios minhas cordas arrebentaram.
“Cheguei
na praça, você tem razão. Fui levado até lá pelo alvoroço das
gentes e achei que de verdade havia gente. Eu já não estava muito
em meus eixos; recordo que vim me apoiando nas paredes como se
caminhasse com as mãos. E os sussurros pareciam destilar das
paredes, como se se filtrassem entre as gretas e os descascados
abertos no reboco. Eu os ouvia. Eram vozes de gente; mas não vozes
claras, e sim secretas, como se me murmurassem alguma coisa ao
passar, ou como se zumbissem contra os meus ouvidos. Afastei-me das
paredes e continuei pelo meio da rua; mas ouvia do mesmo jeito, do
mesmo jeito que se estivessem vindo comigo, adiante ou atrás de mim.
Não sentia calor, como disse antes; antes pelo contrário, sentia
frio. Desde que saí da casa daquela mulher que me emprestou sua cama
e que, como dizia, vi se desfazendo na água de seu suor, desde então
fiquei com frio. E conforme eu andava, o frio aumentava mais e mais,
até me deixar a pele toda arrepiada. Quis retroceder porque achei
que voltando poderia encontrar o calor que eu tinha acabado de
deixar; mas reparei, assim que comecei a andar, que o frio saía de
mim, do meu próprio sangue. Então reconheci que estava assustado.
Ouvi o alvoroço maior na praça e achei que ali, no meio das
pessoas, o medo iria diminuir. Por isso é que vocês me encontraram
na praça. Quer dizer então que Donis acabou voltando? A mulher
tinha certeza de que jamais tornaria a vê-lo.
— Já
era de manhã quando encontramos você. Ele estava vindo sei lá de
onde. Não perguntei.
— Bem,
então cheguei na praça. Encostei-me num pilar tios portais. Vi que
não havia ninguém, embora continuasse ouvindo o burburinho como de
muita gente em dia de feira. Um rumor parelho, sem tom nem som,
parecido ao que o vento faz contra os galhos de uma árvore na noite,
quando a gente não vê nem a árvore nem os galhos, mas ouve o seu
farfalhar. Assim. Não dei mais nem um passo. Comecei a sentir que
chegava perto de mim e dava voltas ao meu redor aquele zunzum
apertado como de um enxame, até que consegui distinguir umas
palavras quase vazias de ruído: “Rogai a Deus por nós.” Ouvi
que era isso que me diziam. Então minha alma gelou. Foi por isso que
vocês me acharam morto.
— Teria
sido melhor se você não tivesse saído da sua terra. O que veio
fazer aqui?
— Eu
já disse no começo. Vim procurar Pedro Páramo, que ao que parece
foi meu pai. Vim trazido pela ilusão.
—
Ilusão? Isso custa caro. A mim custou
viver mais do que o devido. Paguei com isso a dívida de encontrar
meu filho, que não foi, por assim dizer, nada além de uma ilusão a
mais; porque nunca tive filho algum. Agora que estou morta me deu
tempo para pensar e ficar sabendo de tudo. Nem mesmo o ninho para
guardá-lo Deus me deu. Só esta longa vida arrastada que tive,
levando daqui para lá meus olhos tristes que sempre olharam de viés,
como buscando atrás das pessoas, suspeitando que alguém tivesse me
escondido meu menino. E tudo por culpa do maldito sonho. Tive dois:
um deles eu chamo de “bendito” e o outro de “maldito”. O
primeiro foi o que me fez sonhar que tinha tido um filho. E, enquanto
vivi, nunca deixei de acreditar que fosse de verdade; porque o senti
entre meus braços, novinho, terno, cheio de boca e de olhos e de
mãos; durante muito tempo conservei em meus dedos a impressão de
seus olhos adormecidos e o palpitar de seu coração. Como não ia
pensar que aquilo fosse verdade? Eu o levava comigo aonde quer que
fosse, envolto no meu xale, e de repente o perdi. No céu me disseram
que tinham se enganado comigo. Que tinham me dado um coração de
mãe, mas um seio de uma qualquer. Esse foi o outro sonho que tive.
Cheguei ao céu e fui ver se entre os anjos reconhecia a cara de meu
filho. E nada. Todas as caras eram iguais, feitas com a mesma forma.
Então perguntei. Um daqueles santos se aproximou de mim e, sem me
dizer nada, afundou uma das mãos no meu estômago, como se a tivesse
afundado num montão de cera. Ao tirá-la, mostrou algo assim como
uma casca de noz: “Isto prova o que se demonstra.”
“Você
sabe como eles falam esquisito lá em cima; mas dá para entender.
Quis dizer a eles que aquilo era só o meu estômago enrugado pela
fome e pelo pouco que comi; mas outro daqueles santos me empurrou
pelos ombros e me mostrou a porta de saída: ‘Vai descansar um
pouco mais na terra, filha, e procure ser boa para que seu purgatório
não seja tão longo.”
“Esse
foi o sonho ‘maldito’ que tive e do qual tirei a explicação de
que nunca havia tido nenhum filho. Soube quando já era demasiado
tarde, quando meu corpo tinha se desmedrado, quando a espinha saltou
por cima da minha cabeça, quando já não podia caminhar. E de
arremate, o povoado foi ficando solitário; todos tomaram caminho
para outros rumos e com eles foi-se embora também a caridade da qual
eu vivia. Então me sentei para esperar a morte. Depois que
encontramos você, meus ossos se revolveram e ficaram quietos.
‘Ninguém me dará importância’, pensei. Sou uma coisa que não
estorva ninguém. Você vê, nem mesmo roubei espaço aqui na terra.
Fui enterrada na mesma sepultura que você e coube muito bem no oco
dos seus braços. Aqui neste canto, onde você me vê agora. Só me
ocorre que deveria ser eu que estivesse abraçando você. Está me
ouvindo? Lá fora está chovendo. Você não sente o bater da chuva?
— Sinto
como se alguém caminhasse em cima de nós.
— Deixe
de ter medo. Ninguém mais pode botar medo em você. Trate de pensar
em coisas agradáveis porque vamos estar muito tempo enterrados.
Juan
Rulfo, in Pedro Páramo
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