— Os
senhores querem saber como se deu esse caso do veado, uma história
que apontei outro dia? perguntou Alexandre às visitas, um domingo,
no copiar. Ora muito bem. Olhem aquele monte ali na frente. É longe,
não é?
— Muito
longe, respondeu o cego preto Firmino.
— Como
é que o senhor sabe, seu Firmino? grunhiu o narrador. O senhor não
vê.
— Não
sei não, seu Alexandre, voltou o negro. Eu disse que era longe
porque o senhor é o dono da casa e deve saber. O senhor achou que
era longe e eu concordei. Não está certo?
— Está,
resmungou Alexandre. Mas eu quero a opinião dos outros. Que
distância vai daqui àquele monte, seu Libório?
Seu
Libório arriscou meia légua. Mestre Gaudêncio afastou o monte para
duas léguas. E Das Dores afirmou que ele devia estar a umas
cinquenta:
— É
o que eu digo, meu padrinho. Cinquenta léguas, daí para cima.
Alexandre,
moderadamente, repreendeu a afilhada:
— Isso
não, Das Dores. Que desconchavo! Assim também é demais. Deixe
esses despotismos, para os nossos amigos não fazerem mau juízo, não
pensarem que eu ando com invenções. As minhas histórias são
exatas.
— Tudo
ali no duro, opinou seu Libório. Ponha meia légua.
— Eu
propus duas, disse mestre Gaudêncio.
— E
eu cinquenta, cochichou Das Dores. Mas parece que foi bobagem.
— Foi,
gritou Alexandre. Vamos dividir isso. Juntamos tudo e depois
repartimos. Cinquenta com dois são cinquenta e dois. Mais meio:
cinquenta e dois e meio. Qual é a terça de cinquenta e dois e meio,
Cesária?
— Isso
é um número muito comprido, respondeu Cesária. Se eu tivesse aqui
os meus caroços de mulungu, a resposta ia logo; mas assim de cabeça,
que dificuldade! Negócio de conta é um desespero, Alexandre. Você
conhece a adivinhação dos lenços? Não conhece. Pois eu digo. Uma
rua tem cem casas, cada casa cem janelas, cada janela cem moças,
cada moça cem vestidos, cada vestido cem bolsos, cada bolso tem cem
lenços, cada lenço quatro pontas e cada ponta um vintém. Quanto é
o dinheiro que há na rua? Hem? Nunca houve quem soubesse. Quebro a
cabeça desde pequena e não sei. Faz vergonha a gente confessar que
ignora um troço? Não tenho vergonha não, Alexandre. Esses lenços
me têm estragado os miolos. Conta é um buraco. Vou acender o
cachimbo lá dentro. E penso na sua pergunta, Alexandre, que não
gosto de pensar misturada com outras pessoas. Já volto.
Cesária
entrou, alguns minutos depois regressou cachimbando e falou:
—
Alexandre, a terça de cinquenta e dois e
meio é muita coisa, mais de quinze, mais de dezesseis. Talvez chegue
a dezessete e ainda um pedacinho. Mas para que saber isso tão
direito? Ninguém vai medir a terra. Bote dezessete léguas,
Alexandre. Que acha?
— Acho
que devem ser pouco mais ou menos dezessete léguas, concordou
Alexandre. Ou antes: apurada a opinião de vocês todos, ficam
dezessete léguas bem estiradas. Eu não dei opinião, aceito o que
os outros disseram. É muita légua, não é? Pois, meus amigos,
tenho uma lazarina que engole todas elas e não falha. Nunca houve
outra igual.
Alexandre
levantou-se, foi à sala e voltou com uma espingarda velha e
enferrujada, a coronha meio comida pelo cupim, enrolada em arame:
— Olhem
que beleza. Meu irmão tenente, em troca do couro da onça,
ofereceu-me esta maravilha, quando entrou na polícia. Que presente!
Qualquer dia hei de mostrar aos amigos quanto ele vale. Só vendo,
seu Firmino. O senhor vai ver. Isto é: os outros vão ver e o senhor
terá notícia. Já falei no porco bravo que partiu a cachorra pelo
meio? E nas duas araras? Bem. O porco e a cachorra dão para uma
noite e vêm depois, mas as duas araras podem vir logo, e os senhores
ficarão de queixo caído. Um dia destes acordei ouvindo gritos.
Cheguei aqui ao copiar e avistei duas araras, uma voando muito alto,
outra mais baixo. Corri mais que depressa, fui buscar a espingarda e
atirei nos bichos. Vinha amanhecendo, ainda havia um resto de
escuridão, era difícil enxergar as coisas afastadas. Mas, como já
sabem, este olho torto vê tudo. As araras morreram. A que voava mais
baixo caiu ali no terreiro ao meio-dia; a outra chegou às seis horas
da tarde e esbagaçou-se na queda. Eu não tinha intenção…
— Quer
dizer que a espingarda junta o chumbo, não é, seu Alexandre?
perguntou mestre Gaudêncio.
— Por
que, seu Gaudêncio? Que lembrança foi essa?
— É
que as araras estavam longe. Se o chumbo se espalhasse, não havia
pontaria que servisse.
—
Perfeitamente, seu Gaudêncio. O senhor
entende. Faz gosto a gente conversar com uma pessoa de tino assim. A
espingarda junta o chumbo. E não respeita distância. Só falei nas
duas araras para mostrar aos amigos até onde vai um tiro dela. O que
agora me ferve no pensamento é o caso do veado. Conhecem, não? Pois
foi aquilo mesmo. O veado apareceu acolá, em cima do monte, espiou
os quatro cantos, desconfiado, depois sossegou e pôs-se a comer.
Percebi todos os movimentos dele. Um animal bonito e fornido. Peguei
a espingarda, examinei a carga, limpei o cano por dentro com o
saca-trapo e mudei a espoleta, já velha. Dormi algum tempo na
pontaria, puxei o gatilho e — bum! — vi na fumaça o bicho dar um
pulo, correr algumas braças e amunhecar. — “Aquele está
esfolado e comido”, pensei. Saí de casa, andei muito, dezessete
léguas, pela conta de Cesária, e achei o corpo já frio, com dois
caroços de chumbo, um na cabeça, outro no pé direito.
— Que
está dizendo, seu Alexandre? exclamou o cego. O senhor garante que o
veado tinha um caroço na cabeça, outro no pé?
— Que
pergunta, seu Firmino! Pois se eu tirei o couro dele e mandei fazer
aquele gibão que está ali dentro, pendurado no torno!
— Mas,
seu Alexandre, insistiu o negro, o senhor não disse que a espingarda
junta o chumbo? Se a espingarda junta o chumbo, como é que os dois
caroços estavam tão separados? Creio que houve engano.
Alexandre
baixou os olhos, tirou do aió um rolo de fumo e palha de milho,
desembainhou a faca de ponta e fabricou lentamente um cigarro,
procurando a resposta, que não veio.
— Seu
Firmino, o senhor duvida da minha palavra?
— Deus
me livre, seu Alexandre. Quem é que duvida? Estou só perguntando.
— E
pergunta muito bem, gritou Cesária, salvando o marido. Seu Firmino
gosta de explicações. Está certo, cada qual como Deus o fez. Quer
saber por que o chumbo se espalhou? Não se espalhou não, seu
Firmino: o veado estava coçando a orelha com o pé.
Graciliano
Ramos, in Histórias de Alexandre
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