Sentado
debaixo de uma jaqueira com as pernas esticadas e abertas, comendo um
pão de milho meio seco e dando dentadas enormes num pedaço de
chouriço assado, Perilo Ambrósio Góes Farinha resolveu reclamar
com os dois escravos que lhe faziam companhia, embora eles não
tivessem cometido falta alguma e apenas o observassem de olhos
famintos. Estava irritado com a comida. Sempre fora assim, desde
pequeno, muito sensível a decepções relativas a comida. Podia ser
apenas uma expectativa frustrada, podia ser qualquer coisa, até
mesmo alguém que conseguisse chegar antes a um naco em que estivesse
de mira feita, apesar da boca cheia e da atenção vigilantíssima
que costumava dar a toda a comida sobre a mesa, enquanto devorava
fragorosamente a que empilhava nas duas ou três selhas de louça da
terra que lhe serviam de pratos. Lembrou, como de hábito sentindo o
peito ofender-se e doer a solidão pesada da injustiça, que o pai
ameaçara pela décima ou trigésima vez expulsá-lo da vila e da
fazenda, ao vê-lo atacar uma das irmãs com um chuço de assar
porque ela se apossara primeiro de um pedaço de carne distante mas
cobiçado. Não tinha como alcançar aquela salpresa a resplender
entre maxixes e jilós na outra ponta da mesa, nem mesmo podia
reservá-la para si com gritos e ameaças, porque o atrapalhava a
boca ingurgitada de toras de toucinho com farinha que calcava com
ânsia por todos os espaços da boca e, ao mesmo tempo, não se
permitia deixar de angustiar-se por medo de furtarem de suas pilhetas
abarrotadas bocados já antecipados aos fungos e suspiros, se parasse
de lhes dar atenção ainda que alguns instantes. Então não cabia
fazer nada, a não ser, com os olhos de uma baleia ferida, voar por
cima daquele intolerável abismo entre ele e o pedaço de carne e,
antes que a irmã mordesse o que era dele, transfixar-lhe a mão com
o chuço preto e gorduroso. Por que me perseguem? — pensou em
gritar ainda, revoltado, mas, enquanto carregavam para dentro a irmã
com o espeto atravessado da palma às costas da mão, as negras
levantando uma algazarra descabida, o pai arrancou-lhe a lasca de
carne de entre os dentes em meio a uma chuva de tabefes, obrigando-o
a sair da mesa e não mais comer naquele dia. Dentro do quarto em que
o pai o trancou, ardeu de ódio e despeito e chorou quase o tempo
todo, em soluços esganiçados tão fundos que às vezes pensava que
nunca teriam fim. Entre outras vinganças com as quais sonhava de
quando em quando e acordava pingando suor, jurou em voz alta que um
dia obrigaria aquela irmã a passar fome enquanto ele comesse diante
dela, pois jamais, agora que fora ingratamente magoado, existirá em
toda a Terra carne suficiente para matar a fome por aquele pedaço
usurpado e arrancado à força de seus dentes desesperados. Expulso
de casa, sim, tinha sido, muito depois. Mas isso não queria dizer
mais nada agora, chegou quando todos os seus outros rancores já o
envenenavam a cada momento do dia.
— Pois
dão-me água a beber! — falou, com a voz mais estridente e alta
que o normal, como sempre acontecia quando se dirigia aos negros. —
Água! Não basta que tenha de comer esta massamorda pestífera, há
também que lavar a goela com água! Anda lá, dá-me cá esta
cabaça! Feliciano, o negro mais jovem, saiu do sol onde seu amo o
obrigara a ficar junto com o outro e apanhou lentamente a cabaça
para passá-la.
—
Avia-te, estafermo! — gritou Perilo
Ambrósio.
Puxando
a rolha pela cordinha que a atravessava na parte mais grossa, bebeu
ruidosamente alguns goles, baixou a cabaça e deu um pontapé na
perna de Feliciano, tão forte quanto lhe consentia a posição
escarrapachada.
— Ficas
com esta cara de merda, sem dúvidas porque deixei-os ao sol — e lá
os deixo pela Eternidade, se tanto me der na telha! — e porque
querem botar essas bocas de estrumo cá na cabaça de onde bebo esta
água imunda que me trazem! Por que me deitaram desta água imunda à
cabaça? Por quê? Responde, pedaço d’asno, bosta do demônio! E,
se te deixo ao sol, por isso devias ter-me em melhor conta, pois que
lá te faço um grande favor, que teus miolos hão de estar
acostumados a ser cozidos pelo sol das Áfricas e assim te confortas
um pouco. E não me faças cá esta feição de monge silenciário,
macaco deslavado, não me faças feição alguma, os negros não têm
alma e têm quanto direito a expressar-se quanto o têm porcos e
galinhas! O que hás de expressar é a vontade de teu amo, como o que
tereis ambos de relatar sobre a minha bizarria e valentia neste
combate contra as hostes do Madeira, a padecer a mais triste
condição, a comer desta gafanha mortal, a beber desta água
pestilencial, na companhia de dois negros sujos e fedorentos que
peidam como bugres bêbedos e arrefecem-me cá o ânimo de luta, isto
é o que tens de expressar e mais que te ordene!
Levantando
um pouco de poeira, um grupo de cavaleiros repontou na estrada de
barro que passava pela borda da mata. Perilo Ambrósio teve um
sobressalto.
—
Acode-me cá! — disse ao escravo, que
lhe estendeu a mão para que se levantasse, o que fez penosamente, a
barriga decidida a permanecer no chão, enquanto ele arfava com os
joelhos dobrados em grande esforço. — Que tens, não mais podes
com peso? Não saíste à tua mãe então, que muitas vezes a fodi
deitando-lhe em cima todas estas arrobas e não me recordo que
houvesse ficado amassada e, se não já se tivesse tornado numa burra
pelancuda e cheia da gafa que apanhou aos cães, ainda ia eu lá
muitas vezes àquele rabo preto. Mas não há de ser nada —
acrescentou com um riso obsceno, passando a mão gorda e peluda pelo
traseiro de Feliciano —, pois destes cus da tua família ainda não
tive cá o meu quinhão completo, e chegará o dia em que te chamarei
a meu quarto para que te ponhas de quatro pés e te enfie toda esta
chibata pelo vaso de trás, que nisto lá hás de ser bom. Mas então
são milicianos que lá vêm? São os homens do Madeira em debandada?
Estão a tirar uma peça de artilharia, por isso que demoram e vão
tardar, ainda bem. Crês que são mesmo dos nossos? Tens vistas
melhores que as minhas, olha bem. Se me mentes, se me dizes que são
dos nossos e não são, será tua última velhacaria, pois que te
esfolo antes que cá cheguem. Ouve lá, são mesmo dos nossos? Como
passa a batalha, não posso arriscar-me, como passa a batalha?
Nem
mesmo o som da batalha chegava-lhes agora como antes, embora antes
tampouco houvesse o retumbo tremendo que esperavam. Perilo Ambrósio,
que escolhera aquele ponto bem distante da luta para passar o dia,
pois aguardava somente que vencessem os brasileiros para juntar-se a
eles em seguida, temia que o combate não tivesse terminado ainda e
que, por algum azar, fosse obrigado a tomar parte nele. Se queria que
os brasileiros prevalecessem, não era por ser brasileiro — e na
verdade se considerava português —, mas porque, expulso de casa,
abominado pelos pais e por todos os parentes, sob ameaça de
deserdação, deliberara adquirir fama de combatente ao lado dos
revoltosos. Desta maneira, seu pai, fiel à Corte, já foragido e
acusado de todos os crimes e perfídias concebíveis, poderia perder
tudo com a vitória brasileira, passando os bens muito justamente
confiscados a pertencer ao filho varão, distinto pelo denodo
empenhado na causa nacional. Preferia Perilo Ambrósio que a família
fosse degredada para muito longe, talvez para Angola, entre pretos
cozinhando homens para devorar e moscardos traficando moléstias
fatais, mas, na impossibilidade disto, conformava-se com a ideia, que
o fazia rolar horas a fio na cama a esfregar uma mecha de cabelo
entre os dedos com ar estúpido, de tornar-se senhor absoluto da
fazenda, dos negros, das casas e de tudo mais. O que aconteceria com
a família não importava agora, era assunto para mais tarde, depois
que a situação presente fosse aproveitada da melhor forma.
Eram
dos nossos, não havia dúvida. Alguma coisa, pressentia-se daqui,
acontecera com as rodas de uma carreta que transportava um canhão
pequeno. Dois burros castanhos se esticavam junto às guias da
carreta, que mal se movia, apesar da força empregada. Cinco ou seis
cavaleiros paradeavam as montarias para a frente e para trás como
numa cavalhada, alguns infantes se mexiam em volta da roda direita, a
poeira levantada pelos cascos foscava o ar, que ao redor era muito
claro, e assim tudo se via como numa pintura antiga, ouvindo-se os
estalos do chicote do carreiro, as imprecações e os gritos um pouco
depois de haverem acontecido.
— Que
tiram as duas mulas? — perguntou Perilo Ambrósio, franzindo os
olhos para estudar as figuras distantes. — Arrastam um canhãozito
de campo, um falconete, é assim que lhe chamam? Trabalho
esforçadíssimo, haviam que parar e arranjar a roda, pois que se lhe
despega uma, é o que de cá se percebe. Creio que devo ir ter com
eles. Quem nos regulares tem os quatro galões e as agulhetas de
prata ou oiro? Há uns que vão sempre com dragonas a abanar-lhes os
ombros, além de outros ornamentos. A ver cá: depois do cabo de
esquadra, segue-se o furriel, temos então os cadetes e daí por cima
são todos grandes capitães, sargentos-mores e mestres de campo.
Ouve lá, acreditas que nos deem boa acolhida e que nos tenham por
voluntários desgarrados do Barros Falcão? Como passa a batalha,
isto é o que cabe saber, isto sim! Pois, se lá formos e ainda não
tiver passado, é mais certo do que o Bom Senhor nos céus que nos
chamarão a marchar com eles. Então conto-lhes um par de histórias,
que é de mentiras e patranhas que se faz a narração da guerra. E,
afinal, estávamos do outro lado do rio e bem que nos podia ter
apanhado de rebate o inimigo, não podia? Mas, sim, em questões de
batalhas não se leva à conta quem se mostra cansado da lide, ela
ainda continua. Não, não, se devo ter razões com aquele
comandante, não hão que ser simples razões, sem nada a mostrar por
elas. E então lá não vou sem antes cuidar de alguns aprestos. Anda
cá, estafermo de fumo, anda! Apura-te, infeliz!
Pouco
depois, somente na companhia de Feliciano, Perilo Ambrósio saudou um
tenente, que, ao ver os dois se aproximando, afrouxou a brida e
galopou em direção a eles, estacando no miolo de uma nuvem de barro
avermelhado.
—
Ferimento à bala? — perguntou, pois,
assim que parou, percebeu que Perilo Ambrósio trazia o braço
esquerdo numa tipoia empapada de sangue, assim como o jaleco e a
camisa. — Ainda pode andar bem? Vê-se que perde muito sangue.
— Meu
comandante, vinte almudes de sangue tivera, todos os vinte os daria
gostosamente, e mais os tivera que os daria pela liberdade —
respondeu Perilo Ambrósio, com a voz débil e cortada de ofegos
lacrimosos.
— Mas
é português, não é?
— Sim,
meu comandante, foi Portugal onde primeiro vi a luz e entre
portugueses fui criado, pois que o são meu pai e minha mãe, como
hão de ser também os vossos maiores. Mas, se lá vi a luz, cá no
Brasil foi que vi a vida e, se falo desta maneira, isto se deve ao
que forcejaram desde sempre por meter-me na cabeça, eis que até aos
estudos na Corte quiseram enviar-me, não houvera eu lutado para não
formar-me em meio aos inimigos da liberdade e da Independência. Meu
pai, sim, muito infelizmente, se alia à causa do opressor e isto me
parte o coração, sendo eu brasileiro mais que por presença aqui,
senão porque me sinto tão nativo a estas terras quanto as aves e os
bosques. Eis por que saí da casa dos meus pais, renunciei à fazenda
e ao espólio e vim cá combater até não me restar alento, ainda
que de pouca valia seja. E já vínhamos desde a madrugada, sem
descanso, para nos juntarmos aos homens do grande mestre de campo
coronel Barros Falcão, quando, ao vencermos a travessia do rio,
pilhou-nos um magote deles. Não fora a bizarria do negro Inocêncio,
que vinha na nossa companhia e atacou dois sabreadores inimigos,
quando já sucumbia eu pelo balaço de algum escopeteiro que nos fez
fogo por trás, aqui não estávamos agora. Esse negro Inocêncio,
fiel e bravo, continua lá sob a árvore, malferido, talvez à morte,
não pode mexer-se nem ser carregado. Mas ainda estou pronto para o
combate, meu Senhor comandante, e no aguardo das ordens de Vossa
Mercê.
— Não,
meu bravo, meu camarada — disse o tenente, com os olhos detidos de
admiração, o corpo inclinado para a frente, as mãos na maçaneta
da sela. — É necessário que descanses, que cures as tuas feridas.
Aqui por este fianco, um pouquinho na direção do Sul, as forças do
Madeira nos sufocam, há quem afirme que recebeu reforços de três
ou quatro mil homens, porventura muitos mais. Mas também nós temos
acolhido reforços de toda parte e não podemos deixar que nossos
bons camaradas, os que lutam e derramam sangue pela insurreição,
fiquem sem amparo e assistência. Aqueles lá, menos um, estão
montados mas são praças a pé, moços de cavalariça que se
engajaram. Um deles mostrará o caminho por onde irão encontrar
alguma ajuda, algum lenitivo para essas feridas. Não podes perder
mais sangue, já foi demais.
— Não,
meu comandante, minhas feridas já as pensou este outro negro que me
acompanha e cuja bravura e dedicação são dignas de uma verdadeira
pessoa, tanto assim que, a triunfar a causa brasileira como Deus há
de ser servido prover, minha tenção é dar-lhe carta de alforria,
para que se veja tão livre quanto seremos os brasileiros, embora
seja a única propriedade que possuo no mundo. Temo que seja tarde,
pois esvaía-se em sangue e já desfalecia quando o deixamos em busca
de ajuda, mas causa-me cuidado maior que eu aquele negro lá ao pé
da árvore, que com tanta valentia se houve na defesa de sua pátria
e de seu amo. Cá por mim posso arranjar-me. Um daqueles cavalicoques
que me cedais para mim será um palafrém real e nele, mesmo em
marcha descansada, hei de chegar a algum pouso onde me deem abrigo,
pois são muitos os amigos que tenho em toda parte e mais incontáveis
ainda os corações generosos.
Com
um meneio de cabeça curto e enérgico, o tenente, que não parecia
ter mais de vinte anos e ao falar via-se que fazia esforço para a
voz soar mais grave do que de fato era, disse “pois muito bem” em
tom marcial e, segurando o chapéu armado que balançava um pouco
frouxo no cocuruto, galopou de volta a seu grupo. Fazendo apear um
dos praças depois de levá-lo até Perilo Ambrósio, passou o cavalo
e uma quartinha de água, acenou como quem esboça uma saudação.
Com o negro Feliciano cabisbaixo mas ligeiro à frente, Perilo
Ambrósio oscilava devagar, montando o cavalo em marcha andadeira, já
quase chegando aonde a estrada dobrava por trás dos matos e
desaparecia em outra direção. Parou um momento, olhando de longe o
tenente desmontar junto da árvore onde tinham estado, andar alguns
passos, curvar-se brevemente, tirar e recolocar o chapéu e talvez
benzer-se — a distância era grande demais para se ter certeza. O
tenente montou outra vez e chouteou de volta a seu grupo emoldurado
de poeira. Perilo Ambrósio ficou contente em verificar que tudo
resultara muito bem até o último pormenor, embora já antes
estivesse seguro de que o tenente encontraria Inocêncio morto.
Afinal, quando o sangrara à faca para lambuzar-se de seu sangue e
assim apresentar-se ao tenente, terminara por dar-lhe mais cuteladas
do que planejara, já que os braços e as mãos lhe fugiram do
controle e golpeou o negro como se estivesse tendo espasmos. Melhor
que haja morrido logo e não se pode negar que de um modo ou de outro
deu sangue ao Brasil, pensou Perilo Ambrósio, voltando as costas e
cutucando mansamente as ilhargas do cavalo para tomar de vez a
estrada.
João
Ubaldo Ribeiro, in Viva o povo brasileiro
Nenhum comentário:
Postar um comentário