Tenho
um só inimigo. Nunca saberei de que maneira pôde entrar em minha
casa, na noite de quatorze de abril de 1977. Foram duas as portas que
abriu: a pesada porta da rua e a de meu breve compartimento. Acendeu
a luz e me despertou de um pesadelo que não recordo, mas tio qual
havia um jardim. Sem aumentar a voz ordenou que me levantasse e me
vestisse imediatamente. Havia-se decidido a minha morte e o lugar
destinado à execução ficava um pouco longe. Mudo de assombro,
obedeci. Era menos alto que eu porém mais robusto, e o ódio lhe
havia conferido sua força. No correr dos anos não tinha mudado; só
uns poucos fios de prata no cabelo escuro. Animava-o uma espécie de
negra felicidade. Sempre me havia detestado e agora ia me matar. O
gato Beppo nos olhava de sua eternidade, mas nada fez para me salvar.
Tampouco o tigre de cerâmica azul que há no meu quarto, nem os
feiticeiros e gênios de As Mil e Uma Noites. Quis que algo me
acompanhasse. Pedi que me deixasse levar um livro. Escolher uma
Bíblia teria sido demasiado evidente. Dos doze tomos de Emerson
minha mão tirou um, ao azar. Para não fazer ruído descemos pela
escada. Contei cada degrau. Notei que evitava me tocar, como se o
contato pudesse contaminá-lo.
Na
esquina de Charcas e Maipu, em frente ao pequeno convento, esperava
um cupê. Com um gesto cerimonioso que significava uma ordem, fez com
que eu subisse primeiro. O cocheiro 1á sabia nosso destino e
fustigou o cavalo. A viagem foi muito lenta, e como era de se supor,
silenciosa. Temi (ou esperei) que também fosse interminável. A
noite era de lua e serena, e sem um sopro de ar. Não havia uma alma
nas ruas. A cada lado da carruagem as casas baixas, que eram todas
iguais, traçavam uma guarda. Pensei: já estamos no Sul. Alto na
sombra vi o relógio de uma torre; no grande disco luminoso não
havia nem algarismos nem ponteiros. Não atravessamos, que eu saiba,
uma só avenida. Eu não tinha medo, nem sequer medo de ter medo, nem
sequer medo de ter medo de ter medo, à infinita maneira dos eleatas,
mas quando a portinhola abriu e tive que saltar, quase caí. Subimos
por uns degraus de pedra. Havia carneiros singularmente lisos e eram
muitas as árvores. Me conduziu ao pé de uma delas e ordenou que me
estendesse na grama, de costas, com os braços em cruz. Desta posição
divisei uma loba romana e soube onde estávamos. A árvore da minha
morte era um cipreste. Sem me propor, repeti a famosa linha: Quantum
lenta solent inter viburna cupressi.
Recordei
que lenta, nesse contexto, quer dizer flexível, mas nada tinham de
flexíveis as folhas da minha árvore. Eram iguais, rígidas e
lustrosas, e de matéria morta. Em cada uma havia um monograma. Senti
asco e alívio. Percebi que um grande esforço poderia me salvar. Me
salvar e por acaso perdê-lo, já que, habitado pelo ódio, não se
havia fixado no relógio nem nos monstruosos galhos. Soltei meu
talismã e apertei a grama com as duas mãos. Vi pela primeira e
última vez o fulgor do aço. Acordei; minha mão esquerda tocava a
parede do meu quarto.
Que
pesadelo estranho, pensei, e não tardei a mergulhar no sono.
No
dia seguinte descobri que na prateleira havia um buraco: faltava o
livro de Emerson, que havia ficado no sonho. Dez dias depois me
disseram que meu inimigo havia saído de sua casa uma noite e que não
havia regressado. Nunca regressará. Encerrado no meu pesadelo,
seguirá descobrindo com horror, sob a lua que não vi, a cidade de
relógios em branco, de árvores falsas que não podem crescer, e
ninguém sabe que outras coisas.
Jorge
Luis Borges, in Os conjurados
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