As
gramáticas classificam as palavras em substantivo, adjetivo, verbo,
advérbio, conjunção, pronome, numeral, artigo e preposição. Os
poetas classificam as palavras pela alma, porque gostam de brincar
com elas, e pra brincar com elas é preciso ter intimidade primeiro.
É a alma da palavra que define, explica, ofende ou elogia, que se
coloca entre o significante e o significado pra dizer o que quer, pra
dar sentimento às coisas, pra fazer sentido. Nada é mais fúnebre
do que a palavra fúnebre. Nada é mais amarelo do que o
amarelo-palavra. Nada é mais concreto do que as letras c, o, n, c,
r, e, t, o, dispostas nessa ordem e ditas dessa forma, assim,
concreto, e já se disse tudo, pois as palavras agem, sentem e falam
por elas próprias. A palavra nuvem chove. A palavra triste chora. A
palavra sono dorme. A palavra tempo passa. A palavra fogo queima. A
palavra faca corta. A palavra carro corre. A palavra palavra diz. O
que quer. E nunca desdiz depois.
As
palavras têm corpo e alma, mas são diferentes das pessoas em vários
pontos. As palavras dizem o que querem, está dito, e pronto. As
palavras são sinceras, as segundas intenções são sempre das
pessoas. A palavra juro não mente. A palavra mando não rouba. A
palavra cor não destoa. A palavra sou não vira casaca. A palavra
liberdade não se prende. A palavra amor não se acaba. A palavra
ideia não muda. Palavras nunca mudam de ideia.
Palavras
sempre sabem o que querem. Quero não será desisto. Sim nunca jamais
será não. Árvore não será madeira. Lagarta não será borboleta.
Felicidade não será traição. Tesão nunca será amizade.
Sexta-feira não vira sábado nem depois da meia-noite. Noite nunca
vai ser manhã. Um não será dois em tempo algum. Dois não será
solidão. Dor não será constantemente. Semente nunca será flor. As
palavras também têm raízes, mas não se parecem com plantas, a não
ser algumas delas, verde, caule, folha, gota.
As
células das palavras são as letras. Algumas são mais importantes
do que as outras. As consoantes são um tanto insolentes. Roubam as
vogais pra construírem sílabas e obrigam a língua a dançar dentro
da boca. A boca abre ou fecha quando a vogal manda. As palavras
fechadas nem sempre são mais tímidas. A palavra sem-vergonha está
aí de prova. Prova é uma palavra difícil. Porta é uma palavra que
fecha. Janela é uma palavra que abre. Entreaberto é uma palavra que
vaza. Vigésimo é uma palavra bem alta. Carinho é uma palavra que
falta. Miséria é uma palavra que sobra. A palavra óculos é séria.
Cambalhota é uma palavra engraçada. A palavra lágrima é triste. A
palavra catástrofe é trágica. A palavra súbito é rápida.
Demoradamente é uma palavra lenta. Espelho é uma palavra prata.
Ótimo é uma palavra ótima. Queijo é uma palavra rato. Rato é uma
palavra rua.
Existem
palavras frias como mármore. Existem palavras quentes como sangue.
Existem palavras mangue, caranguejo. Existem palavras lusas,
Alentejo. Existem palavras itálicas, ciao. Existem palavras
grandes, anticonstitucional. Existem palavras pequenas, microscópico,
minúsculo, molécula, partícula, quinhão, grão, covardia. Existem
palavras dia, feijoada, praia, boné, guarda-sol. Existem palavras
bonitas, madrugada. Existem palavras complicadas, enigma,
trigonometria, adolescente, casal. Existem palavras mágicas, shazam,
abracadabra, pirlimpimpim, sim e não. Existem palavras que dispensam
imagens, nunca, vazio, nada, escuridão. Existem palavras sozinhas,
eu, um, apenas, sertão. Existem palavras plurais, mais, muito,
coletivo, milhão. Existem palavras que são palavrão. Existem
palavras pesadas, chumbo, elefante, tonelada. Existem palavras doces,
goiabada, marshmallow, quindim, bombom. Existem palavras que
andam, automóvel. Existem palavras imóveis, montanha. Existem
palavras cariocas, Corcovado. Existem palavras completas, elas todas.
Toda
palavra tem a cara do seu significado. A palavra pela palavra tirando
o seu significado fica estranha. Palavra, palavra, palavra, palavra,
palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra,
palavra, palavra, palavra, palavra, palavra não diz nada, é só
letra e som.
Adriana
Falcão, in O doido da garrafa
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