Na
Antiguidade, nas origens da poesia, o epos constituiu a primeira
consagração do feito humano. Para propiciar o sucesso de suas
empresas, os homens celebraram o primeiro vencedor das dificuldades,
o herói: não deus, mas homem, ainda que aparentado com os deuses —
homem na medida em que seu destino se cumpre na Terra, é um percurso
terrestre eriçado de obstáculos. A épica antiga narrava o primeiro
ato do homem para sair do caos do indistinto, a luta contra uma
natureza virgem, ainda povoada de monstros, uma natureza amiga ou
inimiga, conforme nela se manifeste a ajuda dos deuses favoráveis ou
a hostilidade dos deuses adversos. Também o choque contra os outros
homens, as batalhas, a história, não passam de manifestações
terrestres de dissídios divinos: mas os duelos dos heróis, seus
itinerários aventurosos, a matéria, em suma, da narrativa, é toda
humana, desdobra-se segundo as leis da Terra.
A
épica moderna já não conhece deuses: o homem está sozinho e tem
diante de si a natureza e a história. E, se a esta altura seria
fácil dizer que natureza e história são os deuses do mundo
moderno, encarnações renovadas das antigas divindades, podemos logo
rebater dizendo que tal divinização se encontra mais facilmente nas
páginas dos filósofos do que naquelas dos escritores. A mesma coisa
seja dita no que tange à divinização do primeiro termo: a
consciência, a razão humana. Os grandes romances parecem nascer
pontual e propositadamente para corrigir as idolatrias intentadas
pela filosofia, para olhá-las com o olhar crítico e relativo do
homem que já não se considera o centro do universo. O romance do
século XIX não podia decerto nascer sem ter atrás de si o trabalho
dos escritores e dos filósofos do século XVIII, que haviam fundado
uma nova noção do ânimo humano, criando — podemos dizer — a
dimensão do indivíduo, que haviam fundado uma nova visão da
natureza e uma nova consciência da história. Mas também é verdade
que a geração pós-napoleônica, que com Stendhal e Puchkin
inaugura o novo romance, já dissolve o caráter providencial da
natureza de Rousseau e o da história do nascente historicismo, para
dar destaque, diante de um cenário natural e histórico que é
apenas teatro de ocasiões para o indivíduo, a heróis nada
exemplares na complexidade de suas paixões, na forte carga vital de
seu egotismo: em Puchkin, fundamentado na sinceridade e no ser quem
se é; em Stendhal, no sutil cálculo secreto, e talvez na hipocrisia
cultivada com o rigor de uma virtude.
Italo
Calvino, in Assunto encerrado
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