Fotograma do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos
Fabiano
recebia na partilha a quarta parte dos bezerros e a terça dos
cabritos. Mas como não tinha roça e apenas se limitava a semear na
vazante uns punhados de feijão e milho, comia da feira, desfazia-se
dos animais, não chegava a ferrar um bezerro ou assinar a orelha de
um cabrito.
Se
pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a cabeça.
Forjara planos. Tolice, quem é do chão não se trepa. Consumidos os
legumes, roídas as espigas de milho, recorria a gaveta do amo, cedia
por preço baixo o produto das sortes. Resmungava, rezingava, numa
aflição, tentando espichar os recursos minguados, engasgava-se,
engolia em seco. Transigindo com outro, não seria roubado tão
descaradamente. Mas receava ser expulso da fazenda. E rendia-se:
Aceitava o cobre e ouvia conselhos. Era bom pensar no futuro, criar
juízo. Ficava de boca aberta, vermelho, o pescoço inchando. De
repente estourava - Conversa. Dinheiro anda num cavalo e ninguém
pode viver sem comer. Quem é do chão não se trepa.
Pouco
a pouco o ferro do proprietário queimava os bichos de Fabiano. E
quando não tinha mais nada para vender, o sertanejo endividava-se.
Ao chegar a partilha, estava encalacrado, e na hora das contas
davam-lhe uma ninharia.
Ora,
daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou o gado, arrependeu-se,
enfim deixou a transação meio apalavrada e foi consultar a mulher.
Sinha Vitória mandou os meninos para o barreiro, sentou-se na
cozinha, concentrou-se, distribuiu no chão sementes de várias
espécies, realizou somas e diminuições. No dia seguinte Fabiano
voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as operações
de Sinha Vitória, como de costume, diferiam das do patrão. Reclamou
e obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de
juros.
Não
se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se
perfeitamente que era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza
havia um erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano
perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o
que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como
negro e nunca arranjar carta de alforria!
O
patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro
fosse procurar serviço noutra fazenda.
Aí
Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Não era preciso
barulho não. Se havia dito palavra à-toa, pedia desculpa. Era
bruto, não fora ensinado. Atrevimento não tinha, conhecia o seu
lugar. Um cabra. Ia lá puxar questão com gente rica? Bruto, sim
senhor, mas sabia respeitar os homens. Devia ser ignorância da
mulher, provavelmente devia ser ignorância da mulher. Até
estranhara as contas dela. Enfim, como não sabia ler (um bruto, sim
senhor), acreditara na sua velha. Mas pedia desculpa e jurava não
cair noutra.
O
amo abrandou, e Fabiano saiu de costas, o chapéu varrendo o tijolo.
Na porta, virando-se, enganchou as rosetas das esporas, afastou-se
tropeçando, os sapatões de couro cru batendo no chão como cascos.
Foi
até a esquina, parou, tomou fôlego. Não deviam tratá-lo assim.
Dirigiu-se ao quadro lentamente. Diante da bodega de seu Inácio
virou o rosto e fez uma curva larga. Depois que acontecera aquela
miséria, temia passar ali. Sentou-se numa calçada, tirou do bolso o
dinheiro, examinou-o, procurando adivinhar quanto lhe tinham furtado.
Não podia dizer em voz alta que aquilo era um furto, mas era.
Tomavam-lhe o gado quase de graça e ainda inventavam juro. Que juro!
O que havia era safadeza.
-
Ladroeira.
Nem
lhe permitiam queixas. Porque reclamara, achara a coisa uma
exorbitância, o branco se levantara furioso, com quatro pedras na
mão. Para que tanto espalhafato?
-
Hum! hum!
Recordou-se
do que lhe sucedera anos atrás, antes da seca, longe. Num dia de
apuro recorrera ao porco magro que não queria engordar no chiqueiro
e estava reservado às despesas do Natal: matara-o antes de tempo e
fora vendê-lo na cidade. Mas o cobrador da prefeitura chegara com o
recibo e atrapalhara-o. Fabiano fingira-se desentendido: não
compreendia nada, era bruto. Como o outro lhe explicasse que, para
vender o porco, devia pagar imposto, tentara convencê-lo de que ali
não havia porco, havia quartos de porco, pedaços de carne. O agente
se aborrecera, insultara-o, e Fabiano se encolhera. Bem, bem. Deus o
livrasse de história com o governo. Julgava que podia dispor dos
seus troços. Não entendia de imposto.
-
Um bruto, está percebendo?
Supunha
que o cevado era dele. Agora se a prefeitura tinha uma parte, estava
acabado. Pois ia voltar para casa e comer a carne. Podia comer a
carne? Podia ou não podia? O funcionário batera o pé agastado e
Fabiano se desculpara, o chapéu de couro na mão, o espinhaço
curvo: - Quem foi que disse que eu queria brigar? O melhor é a gente
acabar com isso.
Despedira-se,
metera a carne no saco e fora vendê-la noutra rua, escondido. Mas,
atracado pelo cobrador, gemera no imposto e na multa. Daquele dia em
diante não criara mais porcos. Era perigoso criá-los.
Olhou
as cédulas arrumadas na palma, os níqueis e as pratas, suspirou,
mordeu os beiços. Nem lhe restava o direito de protestar. Baixava a
crista. Se não baixasse, desocuparia a terra, largar-se-ia com a
mulher, os filhos pequenos e os cacarecos. Para onde? Hem? Tinha para
onde levar a mulher e os meninos? Tinha nada!
Espalhou
a vista pelos quatro cantos. Além dos telhados, que lhe reduziam o
horizonte, a campina se estendia, seca e dura. Lembrou-se da marcha
penosa que fizera através dela, com a família, todos Haviam
escapado, e isto lhe parecia um milagre. Nem sabia como tinham
escapado.
Se
pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam. Aparentemente
resignado, sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo
tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da
prefeitura. Tudo na verdade era contra ele. Estava acostumado, tinha
a casca muito grossa, mas às vezes se arreliava. Não havia
paciência que suportasse tanta coisa.
-
Um dia um homem faz besteira e se desgraça.
Pois
não estavam vendo que ele era de carne e osso? Tinha obrigação de
trabalhar para os outros, naturalmente, conhecia o seu lugar. Bem.
Nascera com esse destino, ninguém tinha culpa de ele haver nascido
com um destino ruim. Que fazer? Podia mudar a sorte? Se lhe dissessem
que era possível melhorar de situação, espantar-se-ia. Tinha vindo
ao mundo para amansar brabo, curar feridas com rezas, consertar
cercas de inverno a verão. Era sina. O pai vivera assim, o avô
também. E para trás não existia família. Cortar mandacaru,
ensebar látegos - aquilo estava no sangue. Conformava-se, não
pretendia mais nada Se lhe dessem o que era dele, estava certo. Não
davam. Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos.
Por que seria que os homens ricos ainda lhe tomavam uma parte dos
ossos? Fazia até nojo pessoas importantes se ocuparem com
semelhantes porcarias.
Na
palma da mão as notas estavam úmidas de suor. Desejava saber o
tamanho da extorsão. Da última vez que fizera contas com o amo o
prejuízo parecia menor. Alarmou-se. Ouvira falar em juros e em
prazos. Isto lhe dera uma impressão bastante penosa: sempre que os
homens sabidos lhe diziam palavras difíceis, ele saía logrado.
Sobressaltava-se escutando-as. Evidentemente só serviam para
encobrir ladroeiras. Mas eram bonitas. As vezes decorava algumas e
empregava-as fora do propósito. Depois esquecia-as. Para que um
pobre da laia dele usar conversa de gente rica? Sinha Terta é que
tinha uma ponta de língua terrível. Era: falava quase tão bem como
as pessoas da cidade. Se ele soubesse esmolambados e famintos.
Falar
como Sinha Terta, procuraria serviço noutra fazenda, haveria de
arranjar-se. Não sabia. Nas horas de aperto dava para gaguejar,
embaraçava-se como um menino, coçava os cotovelos, aperreado. Por
isso esfolavam-no. Safados. Tomar as coisas de um infeliz que não
tinha onde cair morto! Não viam que isso não estava certo? Que iam
ganhar com semelhante procedimento? Hem? Que iam ganhar?
-
An!
Agora
não criava porco e queria ver o tipo da prefeitura cobrar dele
imposto e multa. Arrancavam-lhe a camisa do corpo e ainda por cima
davam-lhe facão e cadeia. Pois não trabalharia mais, ia descansar.
Talvez
não fosse. Interrompeu o monólogo, levou uma eternidade contando e
recontando mentalmente o dinheiro. Amarrotou-o com força, empurrou-o
no bolso raso da calça, meteu na casa estreita o botão de osso.
Porcaria.
Levantou-se,
foi até a porta de uma bodega, com vontade de beber cachaça. Como
havia muitas pessoas encostadas ao balcão, recuou. Não gostava de
se ver no meio do povo. Falta de costume. As vezes dizia uma coisa
sem intenção de ofender, entendiam outra, e lá vinham questões.
Perigoso entrar na bodega. O único vivente que o compreendia era a
mulher. Nem precisava falar: bastavam os gestos. Sinha Terta é que
se explicava como gente da rua. Muito bom uma criatura ser assim, ter
recurso para se defender. Ele não tinha. Se tivesse, não viveria
naquele estado.
Um
perigo entrar na bodega. Estava com desejo de beber um quarteirão de
cachaça, mas lembrava-se da última visita feita à venda de seu
Inácio. Se não tivesse tido a ideia de beber, não lhe haveria
sucedido aquele desastre. Nem podia tomar uma pinga descansado. Bem.
Ia voltar para casa e dormir.
Saiu
lento, pesado, capiongo, as rosetas das esporas silenciosas. Não
conseguiria dormir. Na cama de varas havia um pau com um nó, bem no
meio. Só muito cansaço fazia um cristão acomodar-se em semelhante
dureza. Precisava fatigar-se no lombo de um cavalo ou passar o dia
consertando cercas. Derreado, bambo, espichava-se e roncava como um
porco. Agora não lhe seria possível fechar os olhos. Rolaria a
noite inteira sobre as varas, matutando naquela perseguição.
Desejaria imaginar o que ia fazer para o futuro. Não ia fazer nada.
Matar-se-ia no serviço e moraria numa casa alheia, enquanto o
deixassem ficar. Depois sairia pelo mundo, iria morrer de fome na
catinga seca.
Tirou
do bolso o rolo de fumo, preparou um cigarro com a faca de ponta. Se
ao menos pudesse recordar-se de fatos agradáveis, a vida não seria
inteiramente má.
Deixara
a rua. Levantou a cabeça, viu uma estrela, depois muitas estrelas.
As figuras dos inimigos esmoreceram. Pensou na mulher, nos filhos e
na cachorra morta. Pobre de Baleia. Era como se ele tivesse matado
uma pessoa da família.
Graciliano
Ramos, in Vidas Secas
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