domingo, 28 de maio de 2017

Se nos permite uma sugestão


PARA: GUIMARÃES ROSA
ASSUNTO: GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Prezado senhor,
Primeiramente, gostaríamos de parabenizá-lo pela atualidade da trama, que incorpora um dos tópicos que permeiam nossa sociedade, como a questão de gênero. É muito bonito o modo como o leitor é conduzido à revelação de que Diadorim é um travesti (ou seria transexual? Transgênero, talvez?). No entanto, a fatura da obra, como um todo, não está à altura da ambição a que o senhor pretende. E isso se deve única e exclusivamente a sua linguagem.
Se nos permite uma consideração franca e objetiva, pareceu-nos que o senhor se encantou sobremaneira com o personagem Yoda, da série Guerra nas Estrelas. Vê-se que a saga o fisgou. Vamos aos exemplos.
Ao abrirmos seus originais aleatoriamente, em qualquer trecho, à maneira do I Ching (não nos passou despercebida sua profunda ligação com o plano místico da existência, portanto decerto o senhor está familiarizado com o Livro das Mutações), encontraremos frases cuja sintaxe apresenta clara inspiração nas falas do Mestre Jedi:
* “Parece que, com efeito, no poder de feitiço do contrato ele muito não acreditava.”
* “Permeio com quantos, removido no estatuto deles, com uns poucos me acompanheirei, daqueles jagunços, conforme que os anjos da guarda.”
* “Até amigo meu pudesse mesmo ser; um homem, que havia.”
* “Verdadeiro meu propósito era esse, como está dito.”
Mas não desanime, não é o caso de deletar tudo. Pensamos que a obra poderia ser desmembrada, de modo a resultar num florilégio de frases (algumas delas muito tocantes, a bem da verdade), que decerto encontraria excelente recepção entre os internautas. A título de exemplo, pinçamos:
* “O senhor ache e não ache. Tudo é e não é…”
* “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.”
* “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.”
* “Viver é um descuido prosseguido.”
* “Um sentir é o do sentente, mas o outro é o do sentidor.”
* “Deus existe mesmo quando não há.”
* “O diabo não há! Existe é homem humano. Travessia.”
Se a ideia o agradar, poderemos disponibilizar um de nossos estagiários para compilar o livrete. (Que tal o título Qualquer Maneira de Amor Vale a Pena? Nosso time de vendas disse ter apelo.) Caso o volume tenha bom desempenho comercial, poderemos pensar em subprodutos, como agendas com frases inseridas a cada dia do ano, à guisa de máximas (cf. o sucesso de Mario Quintana), ou um estimulante jogo de caça-palavras.
Sempre poderemos fazer de um limão uma limonada, não é mesmo? Afinal, “a morte é para os que morrem”.

Sem mais.
Maria Emilia Bender, in Revista Piauí

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