Sua
Excelência
O
Chefe Provincial Escrevo,
Excelência,
quase por via oral. As coisas que vou narrar, passadas aqui na
localidade, são de mais admirosas que nem cabem num relatório. Faz
conta este relatório é uma carta muito familiar. Desculpe o abuso
da confidência.
Começou-se
tudo na madrugada antepassada. Minha esposa, Dona Ermelinda, veio à
janela e perguntou que barulho era aquele. Abri os custosos olhos e
vi os ombros dela a tremerem, num arrepio. Ela se encaracolou na
capulana, parecia havia um invisível frio. Quase eu ronquei, que
aquilo nem barulho nem era. No costume, Ermelinda me impacienta: é
que minha esposa, Excelência, dorme com os ouvidos de fora,
quizumbando, sempre à espreita. Sofre de medos, dentro e fora do
sono. Daquela vez, ela insistia, maniosa:
— Não
ouve, Jonas? Parece um barco a apitar...
Eu
me desembrulhei nos lençóis e maldiçoei a minha vida. A mim me
parecia era ter escutado trovoadas celestes. Ermelinda afastou os
pesados cortinados, herança dos coloniais. Espreitámos os dois. Lá
fora, o dia era ainda matinal, cinzento preguiçoso.
Desculpe,
a franqueza não é fraqueza: o marxismo seja louvado, mas há muita
coisa escondida nestes silêncios africanos. Por baixo da base
material do mundo devem de existir forças artesanais que não estão
à mão de serem pensadas. Peço desculpa se estou enganado, faço-lhe
uma autocrítica.
Volto
aos acontecimentos. Olhando na janela notei, então, o mais estranho:
não havia vento nem nuvem. A terra estava calma, na ordem tranquila.
Mais longe, no entanto, o rio esperneava, semelhando os infernos.
Como podia ser: calmo aqui, agitado lá? Que forças maldispunham o
mundo num só lado? De onde provinham aqueles trovões? Ermelinda,
inquieta, me perguntava:
— E
os batuques?
— Que
batuques, camarada esposa?
Repare,
Excelência, o devido respeito quando falo com a mulher moçambicana.
Nós, dirigentes, temos que dar o exemplo e começar na célula
familiar. Ermelinda estava apressada dos nervos e continuava me
interrogando:
— Não
ouviu o povo batucando? Qual cerimônia seria essa?
Na
realidade dos fatos, os ngomas tinham barulhado toda a noite, num
pãodemónio.
— Por
que você deixou esta gente vir até aqui, tão pertíssimo?
Eu,
Estêvão Jonas, praguejei: ela que não se metesse. Aquela gente,
ela bem sabia, eram antigos deslocados da guerra. O conflito
terminou, mas eles não regressaram ao campo. Ermelinda conhece as
orientações atuais e passadas. Se fosse era antigamente, tinham
sido mandados para longe. Era o que acontecia se havia as visitas de
categoria, estruturas e estrangeiros. Tínhamos orientações
superiores: não podíamos mostrar a Nação a mendigar, o País com
as costelas todas de fora. Na véspera de cada visita, nós todos,
administradores, recebíamos a urgência: era preciso esconder os
habitantes, varrer toda aquela pobreza. Porém, com os donativos da
comunidade internacional, as coisas tinham mudado. Agora, a situação
era muito contrária. Era preciso mostrar a população com a sua
fome, com suas doenças contaminosas. Lembro bem as suas palavras,
Excelência: a nossa miséria está render bem. Para viver num país
de pedintes, é preciso arregaçar as feridas, colocar à mostra os
ossos salientes dos meninos. Foram essas palavras do seu discurso,
até apontei no meu caderno manual. Essa é atual palavra de ordem:
juntar os destroços, facilitar a visão do desastre. Estrangeiro de
fora ou da capital deve poder apreciar toda aquela coitadeza sem
despender grandes suores. É por isso os refugiados vivem há meses
acampados nas redondezas da administração, dando ares de sua
desgraça.
— Não
ouve, agora? Lá, é um navio a chorar...
Minha
mulher, Excelência, é teimosa de mais! Já há mais de um século
que os navios não sobem a Tizangara. Este rio já ficou sem visita.
Como ela podia escutar um navio? Por isso, decidi tomar controlo da
situação. Gritei pelo milícia. Este se apresentou, continencioso.
Estava tão cheio com sono que, no princípio, falou em chimuanzi.
Bem eu tinha recebido a recomendação de Sua Excelência: aprender a
língua local facilita o entendimento com as populações. Mas eu
desconsigo, nem tempo tenho para as prioridades. O milícia ali
estava, igual uma estátua, mãos ao lado do corpo. Despachei
sentença: os barulhos que terminassem, logo-logo.
— Mas
qual barulhos, Excelência?
— Esses
dos tambores, nem ouves?
— Mas,
Senhor Diministrador, não conhece as cerimônias? São nossas
missas, aqui no Norte.
— Não
quero saber — respondi.
Eu
era autoridade, não podia ficar ali destrocando conversa. Nem valia
a pena prosseguir diálogo: ele era um local, igual aos outros,
maltrapilhoso. Por isso aquele barulho era música para ele.
O
milícia saiu, tornozelos à frente dos pés. Ermelinda suspirou
fundo. De há uns tempos, ela se queixa de mim. Diz eu só ando
resmunhado, parece que carrego a tampa do próprio caixão. É que
eu, segundo suas palavras, me faço maior que meu tamanho. Conforme
suas queixas, ela me encara como boi olhando o sapo inchado: por
muito que sejam os acréscimos se notam as costelas. No que respondo:
tu não sabes, mulher, tu não sabes nada. Ermelinda nem me escuta,
sempre insiste:
— Você
devia ser como esses passaritos que vivem nas costas do hipopótamo:
ser precisado pelos grandes, mas não ser visto por ninguém.
Eu
me irrito com as bazófias dela. Se é tão esperta por que razão
não é ela a administradora? Ou administratriz? Sempre eu lhe faço
lembrar meu heroísmo na luta armada. Em pleno mato, sem nada para
comer, tudo em sacrifício pela libertação do povo. Certa vez, até
comi Colgate.
— Pois
devia ter comido mais pasta de dente! É que ainda tem muito mau
hálito.
Veja
os modos dela responder, taco no taco. Daquela vez, porém, a minha
esposa não me emendou. Sua voz até ganhou um doce sumo:
—
Marido, veja seu coração.
— E
o que tem?
— Está
crescendo mais que o peito, Jonas.
Avançando
a mão em concha, ela me tocou. E sabe onde me tocou, Excelência? No
seio, me carinhou um seio. E me perguntou:
— Não
vê, marido? Olha como você se apalpita, isso ainda lhe faz mal. O
sangue quando ferve, Jonas, deve ser pelos outros motivos. Ou não é,
marido?
Eu
amansei, cheio de respiração. O meu seio, Excelência, é o ponto
por onde me desatam o bicho, como esse botãozinho que acende a voz
do rádio. Sorri. Deveria dar a possibilidade ao corpo, encher-me na
rebuçadura dela. Contudo, fiquei pensageiro, oco, distante.
Ermelinda ainda demorou um aguardo. Mas depois se enfureceu,
desatada.
— Você
está pensar na outra!
— Juro,
não estou — respondi com decisão.
Me
cheguei a ela para desfazer aquela desconfiança. Primeiro, Ermelinda
resistiu. Depois, se adoçou, me dando a paga de um quentinho. E a
mão dela se aranhou meu peito abaixo, rimos ambos e caímos na cama.
Desculpe, Excelência, me estou a afastar da política que é o
assunto que muito nos tem ligado. Vou interromper este relatório,
motivo de me estar a subir a temperatura do sangue. Só de lembrar me
fervem os líquidos. Ainda não lhe confessei, com certeza o senhor
me vai fazer pouco. Todavia, eu sofro de uma estranheza. É que
quando toco em mulher minhas mãos aquecem até ficarem como carvão
aceso. Houve vezes até que pegaram fogo e eu fui obrigado a parar o
ato. Viu uma coisa destas? Deve ser um feitiço que Ermelinda me
encomendou. Quem sabe um dia, de tão quente, também eu expludo no
meio da noite?
Mia
Couto, in O
último voo do flamingo
Nenhum comentário:
Postar um comentário