sexta-feira, 5 de maio de 2017

Crepúsculo vespertino

Anoitece. Uma grande calma se faz nos pobres espíritos fatigados pelo labor do dia.
Os pensamentos tomam as cores ternas e indecisas do crepúsculo.
Do alto da montanha, através as nuvens transparentes da tarde, chega à minha sacada um uivo medonho, composto de uma porção de gritos discordantes, que o espaço transforma em lúgubre harmonia, como a da maré que sobe ou da tempestade que desaba.
Quais são os infortunados que a tarde não acalma e que, como os mochos, tomam o anoitecer por um sinal de sabá? O sinistro ulular nos vem de um negro hospício encravado na montanha. À noite, fumando e contemplando o imenso vale em repouso, eriçado de casa cujas janelas dizem: “Aqui reside a paz, aqui a alegria da família!”, eu posso, quando o vento sopra de lá de cima, embalar meu pensamento assombrado nessa imitação das harmonias do inferno.
O crepúsculo excita os loucos. Lembro-me de que tive dois amigos que o crepúsculo tornava logo doentes. Um deles desconhecia todas as relações de amizade e de polidez, e maltratava, como um selvagem, o primeiro que aparecesse. Eu o vi atirar à cabeça de um criado um frango excelente, no qual julgara ver não sei que insultante hieróglifo. A noite, precursora das volúpias profundas, estragava-lhe as coisas mais suculentas.
O outro, aflito ambicioso, tornava-se, á medida que a noite caía, mais ríspido, mais sombrio, mais tacanho. Indulgente e sociável durante o dia, à noite era impiedoso. E não era somente sobre os outros, mas também sobre ele próprio, que se exercia furiosamente essa mania crepuscular.
O primeiro morreu louco, incapaz de reconhecer a própria mulher e o filho. O segundo carrega a inquietação de um perpétuo mal-estar e, se fosse agraciado com todas as honras que as repúblicas e os príncipes conferem, ainda assim eu creio que o crepúsculo acenderia nele uma ardente ambição de distinções imaginárias. A noite, que lhe punha trevas no espírito, traz luz ao meu. E, se bem que não raro se veja a mesma causa engendrar dois efeitos contrários, eu me sinto sempre, à noite, intrigado e alarmado.
Oh noite! Oh trevas refrescantes! Sois para mim o sinal de uma festa interior, sois o parto de uma angústia! Na solidão das planícies, nos labirintos de pedra de uma capital, fulguração das estrelas, explosão das lanternas, sois o fogo de artifício da deusa liberdade! Crepúsculo, como sois doce e terno! Os róseos reflexos que ainda se veem no horizonte, com a agonia doa dia sob a opressão vitoriosa de sua noite, os fogos dos candelabros produzindo manchas de um vermelho opaco sobre as últimas glórias do ocaso, as pesadas cobertas atiradas por mão invisível das profundezas do Oriente, imitam todos os sentimentos complicados que lutam no coração do homem nas horas solenes da vida.
Dir-se-ia ainda uma dessas estranhas túnicas de dançarina, cuja gaze transparente e sombria deixa entrever os esplendores amortecidos de um fulgurante vestido, como do negro presente transparece o delicioso passado. E as estrelas vacilantes de ouro e de prata, que a semeiam, representam os fogos da fantasia, que só ficam bem acesos sob o luto profundo da Noite.
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

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