sexta-feira, 5 de maio de 2017

A mãe de Jakie

Se eu tivesse uma mãe como a de Jakie Shaler eu faria alguma coisa. Eu faria alguma coisa muito estranha. Eu sairia de casa e procuraria uma outra mãe.
Jakie é um sujeito bacana para zanzar por aí, mas não fala muito. E seu pai é também um sujeito bacana, mas não zanzamos por aí com o pai de um camarada. O sr. Shaler não é mau como a sra. Shaler. Compra para Jakie bolas de futebol, de beisebol, de basquete, e tacos, e luvas de boxe, e trenós, e raquetes de tênis, e arcos e flechas e ferramentas. O sr. Shaler comprou uma arma para Jakie, também. Então Jakie tem todas as coisas que quer, mas não anda por aí com a gente porque sua mãe é dura de jogo. Seu pai é muito diferente. Seu pai é um sujeito bacana.
É sua mãe quem dá todas as surras naquela casa. Ela não deixava Jakie fazer quase nada. Não o deixava sair do quintal aos sábados e, nos dias de aula, ele tem que voltar da escola direto para casa. Antes de seu irmão menor Petey morrer, Jakie tinha de voltar para casa e brincar com ele o tempo todo. Jakie ficava chateado porque Petey era pequeno demais para ser companheiro de brincadeiras. Ele tentava escapar às escondidas. Mas, no momento que atravessava a cerca, Petey começava a gritar com toda a força de seus pulmões e a sra. Shaler saía correndo da cozinha atrás de Jakie. Ela o pegava e levava para o porão e castigava seu couro com uma coça infernal. Era possível ouvir os berros de Jakie por toda a cidade. Batia nele com uma vassoura especial. Surrava com toda a força de seus músculos. Nós víamos as marcas azuladas na sua bunda e em suas pernas. Ele as mostrava para nós.
Jakie se sentia infeliz por ter uma mãe tão malvada. Ela era pior do que malvada: era suja, mas Jakie não contava isso. E quando estava na escola ele detestava sentar-se depois de ter sido surrado por ela. Ele se sentava lenta e suavemente. Sentava-se sobre as mãos para que não doesse tanto. Isso mostra o tipo de mãe que tinha. Não podia correr depois de uma surra. Depois de uma surra ele atuava como árbitro dos jogos, porque a coisa é sempre mais fácil para os árbitros. Arbitrava durante uma semana seguida.
A sra. Shaler fez Jakie comer sabão duas vezes e uma vez queimou sua língua com um atiçador. Jakie teve de comer sabão porque falou palavrão e, se você acha que sabão é tão bacana, experimente. A razão por que teve sua língua queimada com um atiçador foi porque foi flagrado fumando. Estávamos todos fumando no celeiro, a um quarteirão da casa dos Shaler. A sra. Shaler não nos pegou fumando de verdade, mas viu a fumaça e ficou sabendo. E Jakie teve a sorte de a sra. Shaler não encontrar o troço que nós estávamos fumando. Rapaz! Eu digo isso porque era esterco de cavalo.
Foi assim que Petey, o irmãozinho de Jakie, morreu. Um dia ele estava brincando no quintal e um carro ia passando. Petey correu para a rua. Correu direto contra o para-choque. Foi derrubado e atropelado e morreu na hora.
Fizeram o funeral na sexta-feira. Todo mundo na nossa sala foi ver o pequeno Petey na casa dos Shaler na quinta-feira. Todo mundo teve de trazer um níquel para as flores, porque Petey era irmão de Jakie e Jakie era da nossa classe na escola. Alguns sujeitos não trouxeram o níquel. Robert Teale não trouxe.
O pequeno Petey estava num caixão branco. Vestia uma roupinha nova. Exalava um cheiro doce e não parecia muito natural. Tinha o rosto tão branco que parecia usar uma peruca. As cortinas estavam fechadas e havia velas acesas na sala, o que tornava a atmosfera assustadora.
Ajoelhamos e rezamos o rosário. Algumas das meninas choravam. Era difícil não chorar. Depois de algum tempo, o único que não chorava era Robert Teale. Sim, Robert Teale é um durão. É o tipo de sujeito que não chora por nada.
A sra. Shaler entrou na sala. Usava um vestido preto e seus olhos estavam muito vermelhos. Gritou e correu até o caixão e o abraçou e encostou a cabeça no peito de Petey e amarfanhou os seus cabelos e gritou e berrou a Deus, Nosso Senhor, para que não arrancasse Petey dela.
Leve a mim, Deus! Não leve o meu bebê. Oh oh oh oh oh oh oh oh oh — chorava sem parar.
E era triste. A coisa mais triste que vocês já viram. Sabem como ela se sentia, sendo a mãe de Petey. Eu desejava que Deus a levasse no lugar de Petey.
Algumas das garotas choraram tanto que começaram a debandar. Todo mundo chorou, menos Robert Teale. É preciso algo muito forte para fazer aquele sujeito chorar. Ele é durão. Mas as garotas deveriam ter permanecido na sala, porque perderam algo. Perderam a melhor parte.
Foi quando a sra. Shaler começou a falar com Petey como se não estivesse morto, mas apenas adormecido. Ajoelhou-se no chão e puxou Jakie para se ajoelhar ao seu lado. Colocou os braços ao redor do pescoço de Jakie e quase o sufocou até a morte. Você podia ver o rosto de Jakie ficar vermelho e depois arroxeado.
Ela gritou: — Ó meu pequeno Petey! Sua mãe não foi uma boa mãe para você. Volte, por favor, filhinho.
Todo mundo menos Robert Teale estava chorando. Até eu chorava. As moças continuavam a sair com os lenços sobre o nariz. Os cabelos de Petey estavam desgrenhados como se tivesse acabado de deixar a cama naquela manhã. Mas ele não acordou de verdade. Estava morto no caixão. Só parecia que tinha acordado.
A sra. Shaler começou a gritar. Toda vez que o fazia, me embrulhava o estômago. Eu estava mais assustado agora. Estava mais assustado agora do que triste.
Ó Deus, traga-o de volta!
Jakie mal podia falar de tanto que tinha chorado.
Ele disse: — Não fale assim, mãe.
Acho que se sentia inferior diante de nós.
A sra. Shaler gritava: — Eu me arrependo! Eu me arrependo! Eu me arrependo!
Agarrou Jakie. Quase o derrubou.
Disse: — Eu me arrependo! Oh, Jakie, eu prometo a você aqui na frente de Petey, aqui na frente de todos os seus maravilhosos amiguinhos, que vou ser uma boa mãe a partir de agora. Eu lhe prometo, Jakie. Eu prometo.
Jakie disse: — A senhora já é uma boa mãe, mamãe. A senhora é uma ótima mãe, mamãe. Juro que é.
O sr. Shaler chegou. Pegou a sra. Shaler e levou-a ao quarto. Jakie foi até o quarto quando seu pai o chamou. Algum tempo depois, o sr. Shaler saiu do quarto e penteou os cabelos de Petey. Não falou nada. E então saiu de novo. Nós, garotos e garotas, ficamos sozinhos com o caixão. Era apavorante. Ficamos ajoelhados. Mal podíamos ver o rosto e as mãos de Petey. Algumas das garotas queriam ir para casa, mas não se levantaram. Os joelhos doíam de ficarmos ajoelhados sobre o assoalho por tanto tempo. Um dos sujeitos queria saber o que a gente faria a seguir.
Robert Teale levantou-se. Começou a sair. Tinha mesmo coragem. Foi até o caixão e debruçou-se bem perto do rosto de Petey e olhou bem de frente para ele.
E então falou: — Muito bem. Vocês podem fazer o que quiserem. Eu não vou ficar aqui. Vou para casa. Estou indo.
E saiu. Então todo mundo ficou realmente apavorado. Saímos correndo da casa. Como era bom sair para a rua. Todo mundo foi para casa.
Fiquei pensando sobre a sra. Shaler. Fiquei feliz que ela prometeu ser boa para Jakie a partir de agora. Isso significava que Jakie poderia zanzar por aí com a gente se quisesse e nós podíamos usar suas bolas de futebol, beisebol e basquete, seus tacos e suas luvas de boxe, seus trenós e suas raquetes de tênis, os arcos, as flechas e as ferramentas. Podíamos usar sua arma também.
Fizeram o enterro no dia seguinte. Pensamos que íamos poder sair da escola para acompanhá-lo, mas nada feito. Esta escola é uma porcaria. O único que conseguiu ir ao enterro foi Jakie. E o único motivo por que o deixaram sair foi que Petey era seu irmão. Esta é uma porcaria de escola. Minha mãe foi ao enterro. Ela disse que a igreja estava cheia de gente.
Ela disse: — Nunca vi flores tão lindas. O Clube dos Alces mandou uma coroa enorme.
Fiquei feliz que os Alces mandaram, porque meu pai é um Alce.
Minha mãe disse: — Oh, senti muita pena daquele menininho Jakie. Derrubou o castiçal sobre o caixão quando passou. Estava tão assustado. Sentiu-se tão culpado por aquilo.
Jakie compareceu à escola na segunda-feira. Ninguém perguntou sobre o castiçal derrubado. Todo mundo já sabia. A mãe da maioria da turma foi ao funeral e contou aos filhos. Tratamos Jakie com muito carinho, pois o enterro fora apenas dois dias antes.
Escolhemos os times para o jogo depois e o time adversário escolheu Jakie. Mas Jakie não quis jogar.
Ele disse: — Não posso jogar, vou ser o juiz para vocês.
Robert Teale disse: — Meu Deus do Céu! Que tipo de mãe você tem? Ela não prometeu que não ia mais surrar você? Isso que ela fez foi um tremendo golpe sujo.
Jakie não falou muito alto. Mal conseguíamos ouvi-lo.
Ele disse: — Pessoal, vocês não sabem o que eu fiz. Vocês não foram ao enterro, por isso não sabem o que aconteceu.
Robert Teale disse: — Claro que sabemos. Eu sei o que você fez. Não foi uma coisa tão terrível. Você não fez de propósito. Sabe, você tem um diabo de uma mãe.
Jakie começou a chorar. Não chorou alto. Não chorou porque tinha um diabo de mãe. Chorou porque seu irmãozinho Petey estava morto. Dava para ver.
John Fante, in A grande fome

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