quinta-feira, 6 de abril de 2017

Sonho de uma noite de abril*


Penumbra. Escritório. Homem, com as mãos à cabeça, fuma e pensa na vida. Alto-falante:
Já fez sua declaração de imposto de renda?
Que renda? Que declaração? Recebi, gastei, estou sem nenhum.
Prepara tua declaração de imposto de renda!
Mas…
Até 30 de abril, improrrogavelmente!
Batem à porta. Homem vai abrir. Entra uma forma gorda, que dá 210 voltas, senta-se e contempla o homem. Este:
Quem és tu?
Sou o Decreto n o 40 702, que aprova o regulamento do imposto de renda.
E vais me explicar tudo?
Tudinho. Sou simples e prático. Tenho só 210 artigos, em que consolidei toda a literatura sobre o assunto.
Literatura?
Sim. Queres ver? (Bate palmas. Entram pela janela, como besouros, quinze formas diferentes, umas compridas, outras curtinhas, esta pomposa, aquela pífia.) Vou apresentar… Ladies first. (Apontando) Lei n o 154. Lei n o 2354. Lei n o 2862. Lei n o 2973.
As leis cumprimentam cerimoniosamente e tomam assento no sofá-cama, com ares majestáticos.
Homem: — Mas praquê tanta lei?
40 702: — Agora os senhores decretos-leis: 5844, 6071, 7885, 9330, 9407, 9781. Não está faltando alguém?
Os decretos-leis, cheirando a Estado Novo, abanam o rabo, negativamente, e ficam de pé, ao fundo.
40 702: — Bem. Temos ainda os decretos. Aproximem-se. São o 3079, o 36 597, o 36 773, o 38 250. Ah, aquele gordão é o 24 239, com seu regulamento. Tudo isso eu condensei, numa espécie de “seleções”. Mas se tiveres alguma dúvida — vejo que sim, por teu ar pacóvio —, hás de consultar alguns ou todos eles…
Ruído. Os decretos-leis tentam barrar um senhor distinto, meio calvo, que introduziu o nariz na sala.
40 702: — Quem é?
É o Código Civil, dizendo que também quer entrar.
Deixa. Tem um artigo que me interessa.
O Código entra, ressabiado.
Homem (aterrorizado): — E agora, José?
40 702: — Bem. Agora é só me leres com recolhimento, como a um texto metafísico, e encheres este formulário-sanfona, que te dou de graça. Não vais me esconder nada, hem? Pagarás só quatro vezes: o imposto cedular, o complementar, o adicional e o percentual de proteção à família. É facílimo. Até 60 mil cruzeiros não pagas nada, por um lado; por outro, pagas 1, 2, 3, 5, ou 10%, conforme a cédula. Tens direito a descontar 50 mil para custeio de tua esposa. Se ela gastar mais do que isso, azar teu. Idem quanto a filhos. Pagas 50 mil do colégio, por ano, para cada um? O colégio sai de graça, pois deduzes justamente essa importância; o resto da despesa fica por isso mesmo. Se tiveres mais de 25 anos e não te casares, é espeto: 15%. Casa, e barateia. O complementar é de uma clareza de água: de 61 mil a 90 mil, pagas 30 cruzeiros por conto; de 91 a 120, pagas 50; de 121 a 150, morres em 80; de 151 a 200, em 110; de…
Tudo não é o mesmo dinheiro, ganho do mesmo modo?
Não. À medida que ganhas mais, pagas mais. Salvo acima de 3 milhões, quando passarás a pagar meio conto por conto, até o infinito. Quer dizer: se fores pessoa jurídica, poderás reavaliar o ativo, e não pagas nada. Mas sendo pessoa física, simplesmente…
Ordenado é renda?
Por que não? Tudo é renda. Se não for renda para ti, é para o Estado. Não tens um biquinho no Instituto? Recebes e restituis; mas restituis a ti mesmo, porque o Estado é a cooperativa dos cidadãos. Ou não é?
Homem tem uma vertigem. Leis, decretos-leis e decretos, armados de aparelhos de microfilmagem (art. 206, do 40 702), precipitam-se sobre ele, auscultam-no — está morto — e dançam lentamente, em torno do cadáver, ao som da sanfona-formulário, uma pavana de Ravel, em adaptação de J. Coringa.
Carlos Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida
P.S.:* Crônica de 1957!

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