terça-feira, 11 de abril de 2017

Sobre vacas e sabonetes

Você leu um texto meu em que eu falava sobre as múltiplas utilidades das vacas. De fato, das vacas se aproveita tudo. Quem tem um rebanho de vacas tem o futuro garantido. Razão por que, em tempos idos, se media a riqueza de uma pessoa pela quantidade de cabeças de gado que possuía. Primeiro, é o leite. Do leite, o queijo, a manteiga, o requeijão, a ricota, a coalhada, o iogurte, o doce de leite, os sorvetes, os bolos. Seguindo o leite, a utilidade da carne: churrascos, bifes, assados, caldos, pastéis, picadinhos, sanduíches, etc. A carne, como se sabe, tem também uma utilidade médica: um bife cru aplicado sobre um hematoma, diz-se, tem um poder curativo. E aqui, bem baixinho, se vocês não leram o livro Portnoy’s Complaint [A queixa de Portnoy], de Philip Roth –, leiam-no para dar risadas e para aprender sobre um uso erótico inominável que Portnoy dava aos bifes que posteriormente seriam comidos pela família. Há também a utilidade do couro: couro decorativo, como tapete; couro para fazer roupa; couro para fazer cabrestos; couro para fazer escudos de guerra, nos tempos antigos; couro para fazer sapatos, pastas, botas, móveis; couro para fazer chicotes. A utilidade dos chifres, que se usam como instrumentos musicais, berrantes, para fazer botões, para fazer taças de guerreiros ferozes. Não sei as razões das expressões “chifrudo”, “pôr chifre”. Até a bosta das vacas é útil, como se sabe. Pois, usadas como esterco, delas pode nascer a beleza delicada das flores. E um amigo meu, já encantado, o Geraldo Jurgensen, usou pizzas de bosta de vaca secas, depois de escovadas e pintadas a spray dourado, para fazer móbiles levíssimos para decoração de loja grã-fina no shopping ... Tudo isso você entendeu.
Mas eu disse que das vacas também se faz sabão. Isso você não entendeu. O que revela sua pouca idade e o fato de você não ter vivido na roça, em lugares de fogão de lenha. O sebo da vaca, que você pede que o açougueiro tire, era cuidadosamente guardado embaixo do fogão. Ele era matéria-prima para a feitura do famoso sabão preto (que alguns afirmam ter propriedades embelezadoras). Era assim que se fazia. Numa lata de querosene de 18 litros, na qual se faziam alguns furos a prego no fundo, se colocava a cinza retirada do fogão. A cinza era impiedosamente pilada por meio de um pilão, até ficar dura como pedra. Então, diariamente, se colocava um pouquinho de água sobre a cinza. A água filtrava e pingava, através dos furos, num prato. O líquido era negro como café, conhecido por “diquada” (esse nome não se encontra no Aurélio). Segundo me disseram, esse líquido continha potássio, de propriedades detergentes. Aí se ajuntavam, num tacho enorme de cobre, o sebo e a “diquada” e se acendia um fogaréu embaixo. A coisa ia derretendo, misturando, fervendo, bolhas infernais estourando, a poção sendo mexida com uma longuíssima colher de pau, para evitar que os estouros das bolhas caíssem na pele. Ao final, esfriada a pasta negra, ela era enrolada em forma e tamanho de laranjas e embrulhada em palha de milho. Esse sabão era parte importantíssima do uso e da economia de qualquer casa de antigamente.
Uma vez, visitando a aldeia de Salem, nos Estados Unidos – aquela da caça às bruxas –, encontrei-me com uma reprodução da aldeia dos primeiros colonizadores ingleses que vieram para a América do Norte. Do jeito mesmo como viviam. Pois, num canto, estava a sua fabriqueta de sabão, que era igualzinha àquela que havia na minha casa.
Se os fabricantes modernos de sabão ainda usam sebo de vaca, não sei. Mas o cheiro que se sente ao passar perto de suas fábricas me cria suspeitas. Quem sabe, o delicado e perfumado sabonete que você usa para aveludar a sua cútis é feito com sebo de vaca?
Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente

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