quinta-feira, 6 de abril de 2017

O relógio

Um dia, um missionário passeando nos arredores de Nanquim, notou que esquecera o relógio e perguntou a um menino que horas eram.
O garoto do Celeste Império hesitou um pouco, mas depois, decidindo-se, respondeu: — Vou dizer-lhe.
Alguns instantes depois, tornou a aparecer, segurando nos braços um enorme gato.
E, fitando-o como se costuma dizer, na alva dos olhos, afirmou sem hesitar: — Ainda não é bem meio-dia, — o que era verdade.
Quanto a mim, se me inclino sobre a linda Felina, tão bem dotada que é ao mesmo tempo a honra do sexo, o orgulho do meu coração e o perfume do meu espírito, à noite ou durante o dia, em plena luz ou na sombra opaca, vejo sempre distintamente as horas no fundo dos seus olhos adoráveis, sempre a mesma hora, uma hora vasta, solene, grande como o espaço, sem divisões de minutos nem de segundos, — hora imóvel que não está marcada nos relógios e é, no entanto, ligeira como um suspiro, rápida como um olhar.
E, se viesse um importuno perturbar-me quando o meu olhar descansa sobre esse delicioso quadrante, se um gênio intolerante e desonesto, um demônio do contratempo viesse dizer-me: — Que vês com tanto interesse? Que procuras nos olhos desse ser? Vês as horas, oh mortal pródigo e indolente? Eu responderia sem hesitar: — Sim, vejo as horas; é a Eternidade! Não é certo, amada, que é esse um madrigal verdadeiramente meritório e tão enfático como você? Realmente, tanto prazer eu tive em bordar este precioso galanteio que não lhe pedirei nada em troca.
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

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