sábado, 18 de março de 2017

Nada para comer


Comecei a achar que teria de recorrer aos mais pobres para conseguir alimento — estes são o último recurso de um vagabundo faminto. O resultado é garantido, sempre se pode contar com eles. Nunca mandam embora os que estão passando fome. Por todos os Estados Unidos, várias vezes me recusaram comida em grandes mansões, no topo da colina. Mas num casebre qualquer, à beira de um riacho ou de um pântano (com suas janelas quebradas, remendadas com trapos, e uma mãe de rosto cansado, esgotada pelo trabalho), sempre me deram de comer. Oh, vocês que vivem pregando a caridade! Aprendam com os pobres, pois apenas eles são generosos. Não dão sobras porque não as têm. Nunca regateiam o que possuem. Muitas vezes dão o pouco que podem, mesmo estando, eles próprios, muito necessitados. Jogar um osso a um cachorro não é caridade. Caridade é compartilhar o osso com o cão quando você está com tanta fome quanto ele.
Lembro-me de uma casa, em particular, de onde fui escorraçado aquela noite. As janelas da sala de jantar davam para a varanda e, através delas, vi um homem comendo uma torta — uma grande torta de carne. Fiquei em pé, diante da porta aberta, e enquanto ele falava comigo, não parava de mastigar. Era próspero, mas notava-se que tinha ressentimento contra seus semelhantes menos afortunados. Ele cortou abruptamente minha conversa, dizendo de supetão:
Não acredito que você queira arrumar trabalho.
Naquele momento, aquilo era algo irrelevante, até porque eu não tinha dito nada sobre trabalho. O tema da conversa, que eu tinha proposto, era “comida”. De fato, eu não queria trabalhar; queria era pegar o trem expresso para o Oeste aquela noite.
Você não trabalharia mesmo se lhe dessem uma oportunidade — provocou.
Olhei para o rosto tímido da mulher dele e tive certeza de que, se não fosse por aquele Cérbero, eu ainda poderia ganhar um pedaço daquela torta. Mas o cão de guarda se atirou na empada, e percebi que deveria amansá-lo se quisesse ganhar um pedaço dela. Então, suspirei e fingi aceitar sua visão moralista em relação ao trabalho.
É claro que quero trabalhar — blefei.
Não acredito em você — respondeu, fungando.
Então me arrume algo para fazer — respondi em tom desafiador, sustentando o blefe.
Está bem — ele disse. — Venha à esquina da rua tal com a rua tal — já esqueci o endereço! — amanhã de manhã. Você sabe, lá onde fica o edifício incendiado. Vou colocar você para descarregar tijolos.
Está certo, senhor, estarei lá.
O homem resmungou e continuou a comer. Esperei. Após alguns minutos, ele olhou com uma expressão no rosto do tipo “eu-achava-que-você-já-tinha-ido-embora” e perguntou:— Então?
Eu… Eu estou esperando algo para comer — respondi, gentilmente.
Eu sabia que você não queria trabalhar! — vociferou.
Ele tinha toda razão, certamente; porém, deve ter chegado àquela conclusão por leitura de pensamento, e não por raciocínio lógico, algo que lhe faltava. Mas aquele que mendiga de porta em porta deve ser humilde. Por isso, concordei com sua lógica, assim como havia aceitado sua lição de moral.
Veja bem, estou com fome agora — insisti, ainda de modo amável. — Amanhã de manhã estarei com mais fome ainda. Imagine como não estarei depois de descarregar tijolos o dia todo, de estômago vazio. Agora, se você me der algo para comer, estarei em ótima forma para trabalhar.
Ele considerou seriamente o meu pedido, sem parar de mastigar, enquanto a esposa, trêmula, quase se atrevia a falar em minha defesa. Mas não o fez.
Vou lhe dizer o que farei — disse com a boca cheia. — Você vem trabalhar amanhã e, ao meio-dia, lhe adianto o suficiente para seu almoço. Isso vai mostrar se você está sendo sincero ou não.
Enquanto isso… — comecei a frase.
Mas ele interrompeu.
Se eu lhe desse algo para comer agora, nunca mais o veria de novo. Ah, conheço gente do seu tipo! Olhe para mim. Não devo nada a ninguém. Nunca me rebaixei a ponto de pedir comida. Sempre ganhei meu pão. Seu problema é ser preguiçoso e relaxado. Dá para ver isso na sua cara. Sempre trabalhei e fui honesto. Foi assim que me tornei quem sou. E você pode fazer o mesmo se trabalhar e for honesto.
Como você? — perguntei.
Nunca um lampejo de humor deve ter penetrado o espírito sombrio daquele homem embrutecido pelo trabalho.
Sim, como eu — respondeu.
Todos nós? — perguntei.
Sim, todos vocês — respondeu, a convicção vibrando na voz.
Mas, se todos nós nos tornássemos como o senhor — falei —, me permita dizer que não haveria ninguém para descarregar tijolos para você.
Juro que percebi um brilho irônico no olhar da esposa dele. Já o homem ficou pasmo… no entanto, jamais saberei se foi por meu atrevimento ou pela assustadora possibilidade de uma humanidade reformada que não mais descarregasse tijolos para ele.
Não vou perder meu tempo com você! — urrou. — Saia daqui, seu garoto mal-agradecido!
Arrastei meus pés para mostrar minha intenção de partir e perguntei:
Mas não vou ganhar nada para comer?
Ele se levantou de repente. Era um homem grande. E eu, um estranho numa terra estranha, com a polícia atrás de mim. Fui embora correndo. “Mas por que eu seria mal-agradecido?”, eu me perguntava enquanto batia com força o portão. “Por que eu seria ingrato para alguém a quem não devia nada?” Olhei para trás. Ainda podia vê-lo à janela, havia voltado a comer sua torta.
Àquela altura, eu tinha perdido a coragem. Passei por muitas casas sem me atrever a me aproximar.
Todas pareciam iguais, e nenhuma tinha um ar “amistoso”. Depois de andar meia dúzia de quarteirões, deixei de lado meu abatimento e retomei alento. Aquela mendicância era um jogo, e se eu não gostasse das cartas poderia pedir uma nova rodada. Decidi tentar a sorte na casa seguinte. Aproximei-me dela antes do cair da noite, entrando pelo lado, até a porta da cozinha.
Bati suavemente e, assim que vi a face gentil da mulher de meia-idade que me atendeu, como por inspiração, me veio à cabeça a “história” que eu iria lhe contar. Afinal, o sucesso do mendigo depende da habilidade de contar uma boa história.
Jack London, in A estrada

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