Ler
em voz alta, ler em silêncio, ser capaz de carregar na mente de
palavras lembradas são aptidões espantosas que adquirimos por meios
incertos. Todavia, antes que essas aptidões possam ser adquiridas, o
leitor precisa aprender a capacidade básica de reconhecer os signos
comuns pelos quais uma sociedade escolheu comunicar-se: em outras
palavras, o leitor precisa aprender a ler. Claude Lévi-Strauss
conta-nos que no Brasil, durante sua temporada entre os nhambiquaras,
ao vê-lo escrever, eles pegaram o lápis e o papel, desenharam
rabiscos imitando a escrita e pediram-lhe que “lesse” o que
tinham escrito. Os nhambiquaras esperavam que seus rabiscos fossem
tão imediatamente significantes para Lévi-Strauss quanto os que ele
mesmo fizera. Para o antropólogo, que aprendera a ler numa escola a
noção de que um sistema de comunicação pudesse ser imediatamente
compreensível a qualquer outra pessoa parecia absurda. Os métodos
pelos quais aprendemos a ler não só encarnam as convenções da
nossa sociedade em relação à alfabetização - a canalização da
informação, as hierarquias de conhecimento e poder -, como também
determinam e limitam as formas pelas quais nossa capacidade de ler é
posta em uso.
Morei
durante um ano em Sélestat, uma pequena cidade francesa a 35
quilômetros ao sul de Estrasburgo, em plena planície alsaciana,
entre o rio Reno e as montanhas do Vosges.
Ali,
na pequena biblioteca há dois grandes cadernos de anotações
manuscritas. Um deles tem trezentas páginas, o outro. 480; em ambos
os casos, o papel amarelou ao longo dos séculos, mas a escrita, em
diferentes cores de tinta, ainda está surpreendentemente clara. Seus
donos, depois de algum tempo, mandaram encaderná-los a fim de
preservá-los melhor, mas quando estavam em uso pode-se dizer que não
passavam de feixes de páginas dobradas, compradas provavelmente na
barraca de um livreiro de um dos mercados locais. Abertos ao olhar
dos visitantes da biblioteca, eles são - como um cartão
datilografado explica - os cadernos de dois estudantes que
frequentaram a escola de latim de Sélestat nos últimos anos do
século XV, de 1477 a 1501: Guil aume Gisenheim, de cuja vida só se
conhece o que seu caderno de estudante revela, e Beatus Rhenanus, que
se tornaria uma figura importante do movimento humanista e editor de
muitas das obras de Erasmo.
Em
Buenos Aires, nos primeiros anos de escola, também tínhamos
cadernos “de leitura”, laboriosamente manuscritos e ilustrados
não sem dificuldade com lápis de cor. Nossas cadeiras eram presas
umas às outras por braços de ferro fundido e arrumadas em longas
fileiras de duas, levando (o símbolo do poder não nos escapava) até
a mesa do professor, colocada sobre uma plataforma de madeira atrás
da qual avultava o quadro-negro. Cada carteira tinha um furo onde
ficava um tinteiro de porcelana branca, onde mergulhávamos as pontas
de metal de nossas penas; não tínhamos permissão para usar
caneta-tinteiro antes do terceiro ano. Daqui a séculos, se algum
bibliotecário escrupuloso exibisse aqueles cadernos em vitrines,
como objetos preciosos, o que descobriria o visitante? Dos textos
patrióticos copiados em parágrafos caprichosos, o visitante poderia
deduzir que, em nossa educação, a retórica da política desbancava
as sutilezas da literatura; a partir de nossas ilustrações,
aprendíamos a transformar esses textos em slogans (“As Malvinas
pertencem à Argentina” transformava-se em duas mãos ligadas em
torno de um par de ilhas irregulares; “Nossa bandeira é o emblema
do nosso torrão natal”, em três faixas coloridas tremulando ao
vento). A partir das anotações idênticas o visitante poderia
descobrir que nos ensinavam a ler não para o prazer ou o
conhecimento, mas apenas para instrução. Em um país onde a
inflação viria a atingir 200% ao mês, essa era a única maneira de
ler a fábula do gafanhoto e da formiga.
Alberto
Manguel, in Uma história da leitura
Nenhum comentário:
Postar um comentário