sábado, 21 de janeiro de 2017

O aprendizado da leitura (trecho)

Ler em voz alta, ler em silêncio, ser capaz de carregar na mente de palavras lembradas são aptidões espantosas que adquirimos por meios incertos. Todavia, antes que essas aptidões possam ser adquiridas, o leitor precisa aprender a capacidade básica de reconhecer os signos comuns pelos quais uma sociedade escolheu comunicar-se: em outras palavras, o leitor precisa aprender a ler. Claude Lévi-Strauss conta-nos que no Brasil, durante sua temporada entre os nhambiquaras, ao vê-lo escrever, eles pegaram o lápis e o papel, desenharam rabiscos imitando a escrita e pediram-lhe que “lesse” o que tinham escrito. Os nhambiquaras esperavam que seus rabiscos fossem tão imediatamente significantes para Lévi-Strauss quanto os que ele mesmo fizera. Para o antropólogo, que aprendera a ler numa escola a noção de que um sistema de comunicação pudesse ser imediatamente compreensível a qualquer outra pessoa parecia absurda. Os métodos pelos quais aprendemos a ler não só encarnam as convenções da nossa sociedade em relação à alfabetização - a canalização da informação, as hierarquias de conhecimento e poder -, como também determinam e limitam as formas pelas quais nossa capacidade de ler é posta em uso.
Morei durante um ano em Sélestat, uma pequena cidade francesa a 35 quilômetros ao sul de Estrasburgo, em plena planície alsaciana, entre o rio Reno e as montanhas do Vosges.
Ali, na pequena biblioteca há dois grandes cadernos de anotações manuscritas. Um deles tem trezentas páginas, o outro. 480; em ambos os casos, o papel amarelou ao longo dos séculos, mas a escrita, em diferentes cores de tinta, ainda está surpreendentemente clara. Seus donos, depois de algum tempo, mandaram encaderná-los a fim de preservá-los melhor, mas quando estavam em uso pode-se dizer que não passavam de feixes de páginas dobradas, compradas provavelmente na barraca de um livreiro de um dos mercados locais. Abertos ao olhar dos visitantes da biblioteca, eles são - como um cartão datilografado explica - os cadernos de dois estudantes que frequentaram a escola de latim de Sélestat nos últimos anos do século XV, de 1477 a 1501: Guil aume Gisenheim, de cuja vida só se conhece o que seu caderno de estudante revela, e Beatus Rhenanus, que se tornaria uma figura importante do movimento humanista e editor de muitas das obras de Erasmo.
Em Buenos Aires, nos primeiros anos de escola, também tínhamos cadernos “de leitura”, laboriosamente manuscritos e ilustrados não sem dificuldade com lápis de cor. Nossas cadeiras eram presas umas às outras por braços de ferro fundido e arrumadas em longas fileiras de duas, levando (o símbolo do poder não nos escapava) até a mesa do professor, colocada sobre uma plataforma de madeira atrás da qual avultava o quadro-negro. Cada carteira tinha um furo onde ficava um tinteiro de porcelana branca, onde mergulhávamos as pontas de metal de nossas penas; não tínhamos permissão para usar caneta-tinteiro antes do terceiro ano. Daqui a séculos, se algum bibliotecário escrupuloso exibisse aqueles cadernos em vitrines, como objetos preciosos, o que descobriria o visitante? Dos textos patrióticos copiados em parágrafos caprichosos, o visitante poderia deduzir que, em nossa educação, a retórica da política desbancava as sutilezas da literatura; a partir de nossas ilustrações, aprendíamos a transformar esses textos em slogans (“As Malvinas pertencem à Argentina” transformava-se em duas mãos ligadas em torno de um par de ilhas irregulares; “Nossa bandeira é o emblema do nosso torrão natal”, em três faixas coloridas tremulando ao vento). A partir das anotações idênticas o visitante poderia descobrir que nos ensinavam a ler não para o prazer ou o conhecimento, mas apenas para instrução. Em um país onde a inflação viria a atingir 200% ao mês, essa era a única maneira de ler a fábula do gafanhoto e da formiga.
Alberto Manguel, in Uma história da leitura

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