sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Uma questão de honra

Tempo é um fruto: na medida, amadurece; em demasia, apodrece.
À volta do tabuleiro os dois tinham construído uma ilha, um castelo sem areia onde ainda valiam a palavra, a honra e a amizade. Eles os cavalheiros e, no tabuleiro, as damas.
Quanto mais envelheciam, mais os jogos demoravam. O último decorria desde há semanas. Enquanto um jogava, o outro passava pelo sono. O aconchego do pequeno bar era o melhor lugar para dormirem. Ao menos ali estavam longe da abandonada solidão de seus quartos. O bar era o lar. E cada um deles era, para o outro, a humanidade inteira.
Até que, um dia, sucedeu o conflito. Nessa manhã, incidentou-se o seguinte: as peças tinham mudado de posição. As jogadas se desenhavam agora em desfavor de Quintério Luca. O velho entesou a voz, em aplicação de zanga: – Siwale, você veio aqui essa noite? – Minha honra!– negou Esmerado Fabião.
O jogo não estava assim, nem tão pouco.
Mas eu acabei de entrar agora. Entramos juntos, não entramos?
Então, quem mexeu no tabuleiro? Já viu: o meu jogo encontra-se todo comestível.
Com isso eu que não tenho a ver, Quintério.
Mais grave não podia ser. Decidiram consultar o doutor juiz. Encontraram-no na barbearia do Cova-ne. Altisentado, preparado para a barbeação do cabelo. Quase o desconheceram: o juiz modernizara o visual e passara a rapar a cabeça, aos modos da moda. Permaneceu imóvel e distante enquanto escutou o relato dos reformados.
Diga-nos, senhor doutor: pode um jogo mexer-se sozinho à noite?
Depende– respondeu o juiz.
Passou a mão suada pelo couro descabeludo. E acrescentou, enquanto se espreitava ao espelho: – São fenômenos.
Os velhos boquiabriam-se, sem expressão. Nunca tinham escutado palavra com tais sílabas. Mas bastava que o juiz a pronunciasse para que o universo ganhasse congruência.
É isso que se chamam fenômenos paranormais. Nunca ouviram falar?
É que, ultimamente, estamos aqui na vila, sem sair para nenhum lado.
Psicocinese, tropismos sem casualidade determinada. Entendem?
Mentiram acenando com as cabeças. Fez-se pausa, espessou-se o silêncio. Os velhos alinhados, mãos cruzadas em respeito ante a curva do ventre. Mas não havia mais a ser dito. O juiz, entre vênias e licenças, se retirou.
Passando pelos mortais com seu ar divino, o juiz se resumia numa palavra: fenomenal.
Retiraram-se também os velhos, ombros estreitos, passos miúdos. Na rua, Esmerado Fabião sublinhou sua inocência: – Eu não disse que não tinha mexido em nada? E separaram-se, cada um conforme sua solidão.
Quintério Luca deitou-se no seu quarto, calado, mal digerido. Para ele, aquilo tinha sido um irrevogável rasgão. Já não lhe apetecia voltar ao bar, não lhe apetecia viver. Em sua consciência não havia reverso: confiança manchada, amizade desmanchada.
Noite alta, Quintério saiu de casa, cruzando a vila como a coruja furtiva. Bateu na porta da residência do juiz. O magistrado, estremunhado, de roupão, entreabriu-lhe os olhos inquisitivos.
Desculpe, excelência, mas é que uma pergunta ficou-me encravada e quase nem consigo respirar.
Fale, homem.
É que não entendi bem. Afinal, o compadre Quintério aldrabou ou não?
A ética, meu caro Fabião, a ética é profundamente irrelevante, num caso destes. E agora, vá com Deus. Deixe dormir os homens de bem.
Quintério Luca, voz educada, voltou a insistir. O doutor lhe perdoasse, mas não o mandasse embora assim, na ética de Deus. Era pobre, não tinha palavra dispendiosa. Mas ele não podia ficar torturado por aquela dúvida. Que aquilo não era um simples caso de batota ao jogo. Quintério estava a embatotar a vida. Porque, afinal, nunca tinha sido às damas que eles jogavam. O que faziam, repartidamente, era distraírem a espera do fim. E o compadre Fabião era a quem confiava sua única e última riqueza: gordas lembranças, magras confidências.
Foi então que o juiz se alertou, num arrepio. Não foi mais que um simples rebrilho no escuro: o que Luca trazia por baixo do braço era uma antiga, mas autêntica espingarda.
O juiz aconchegou o roupão como se invadido pelo repentino de um frio. O velho ainda demorou a perguntar: – Se eu matar Esmerado Fabião terei desculpa de sua excelência? – Não. Terei que o culpar.
Então, com a devida desculpa, acho que tenho que matar primeiro o senhor doutor juiz.
E disparou sobre o aterrado magistrado. Mas sem ponto na mira. A bala sulcou os céus, sem rumo. O guarda-costas do juiz, aparecido das traseiras da casa, devolveu disparo.
O velho Quintério Luca tombou vegetalmente, já sem suspiro.
Desde então, quem passa no bar da vila pode Esmerado Fabião sentado na eterna mesa, contemplando a cadeira vaga na sua frente. No intervalo dos cabeceios, ele vai repetindo: – É a sua vez, compadre! É a sua vez de pedir.
Mia Couto, in O fio das missangas

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