Tempo
é um fruto: na medida, amadurece; em demasia, apodrece.
À
volta do tabuleiro os dois tinham construído uma ilha, um castelo
sem areia onde ainda valiam a palavra, a honra e a amizade. Eles os
cavalheiros e, no tabuleiro, as damas.
Quanto
mais envelheciam, mais os jogos demoravam. O último decorria desde
há semanas. Enquanto um jogava, o outro passava pelo sono. O
aconchego do pequeno bar era o melhor lugar para dormirem. Ao menos
ali estavam longe da abandonada solidão de seus quartos. O bar era o
lar. E cada um deles era, para o outro, a humanidade inteira.
Até
que, um dia, sucedeu o conflito. Nessa manhã, incidentou-se o
seguinte: as peças tinham mudado de posição. As jogadas se
desenhavam agora em desfavor de Quintério Luca. O velho entesou a
voz, em aplicação de zanga: – Siwale, você veio aqui essa noite?
– Minha honra!– negou Esmerado Fabião.
– O
jogo não estava assim, nem tão pouco.
– Mas
eu acabei de entrar agora. Entramos juntos, não entramos?
–
Então,
quem mexeu no tabuleiro? Já viu: o meu jogo encontra-se todo
comestível.
– Com
isso eu que não tenho a ver, Quintério.
Mais
grave não podia ser. Decidiram consultar o doutor juiz.
Encontraram-no na barbearia do Cova-ne. Altisentado, preparado para a
barbeação do cabelo. Quase o desconheceram: o juiz modernizara o
visual e passara a rapar a cabeça, aos modos da moda. Permaneceu
imóvel e distante enquanto escutou o relato dos reformados.
–
Diga-nos,
senhor doutor: pode um jogo mexer-se sozinho à noite?
–
Depende–
respondeu o juiz.
Passou
a mão suada pelo couro descabeludo. E acrescentou, enquanto se
espreitava ao espelho: – São fenômenos.
Os
velhos boquiabriam-se, sem expressão. Nunca tinham escutado palavra
com tais sílabas. Mas bastava que o juiz a pronunciasse para que o
universo ganhasse congruência.
– É
isso que se chamam fenômenos paranormais. Nunca ouviram falar?
– É
que, ultimamente, estamos aqui na vila, sem sair para nenhum lado.
–
Psicocinese,
tropismos sem casualidade determinada. Entendem?
Mentiram
acenando com as cabeças. Fez-se pausa, espessou-se o silêncio. Os
velhos alinhados, mãos cruzadas em respeito ante a curva do ventre.
Mas não havia mais a ser dito. O juiz, entre vênias e licenças, se
retirou.
Passando
pelos mortais com seu ar divino, o juiz se resumia numa palavra:
fenomenal.
Retiraram-se
também os velhos, ombros estreitos, passos miúdos. Na rua, Esmerado
Fabião sublinhou sua inocência: – Eu não disse que não tinha
mexido em nada? E separaram-se, cada um conforme sua solidão.
Quintério
Luca deitou-se no seu quarto, calado, mal digerido. Para ele, aquilo
tinha sido um irrevogável rasgão. Já não lhe apetecia voltar ao
bar, não lhe apetecia viver. Em sua consciência não havia reverso:
confiança manchada, amizade desmanchada.
Noite
alta, Quintério saiu de casa, cruzando a vila como a coruja furtiva.
Bateu na porta da residência do juiz. O magistrado, estremunhado, de
roupão, entreabriu-lhe os olhos inquisitivos.
–
Desculpe,
excelência, mas é que uma pergunta ficou-me encravada e quase nem
consigo respirar.
– Fale,
homem.
– É
que não entendi bem. Afinal, o compadre Quintério aldrabou ou não?
– A
ética, meu caro Fabião, a ética é profundamente irrelevante, num
caso destes. E agora, vá com Deus. Deixe dormir os homens de bem.
Quintério
Luca, voz educada, voltou a insistir. O doutor lhe perdoasse, mas não
o mandasse embora assim, na ética de Deus. Era pobre, não tinha
palavra dispendiosa. Mas ele não podia ficar torturado por aquela
dúvida. Que aquilo não era um simples caso de batota ao jogo.
Quintério estava a embatotar a vida. Porque, afinal, nunca tinha
sido às damas que eles jogavam. O que faziam, repartidamente, era
distraírem a espera do fim. E o compadre Fabião era a quem confiava
sua única e última riqueza: gordas lembranças, magras
confidências.
Foi
então que o juiz se alertou, num arrepio. Não foi mais que um
simples rebrilho no escuro: o que Luca trazia por baixo do braço era
uma antiga, mas autêntica espingarda.
O
juiz aconchegou o roupão como se invadido pelo repentino de um frio.
O velho ainda demorou a perguntar: – Se eu matar Esmerado Fabião
terei desculpa de sua excelência? – Não. Terei que o culpar.
–
Então,
com a devida desculpa, acho que tenho que matar primeiro o senhor
doutor juiz.
E
disparou sobre o aterrado magistrado. Mas sem ponto na mira. A bala
sulcou os céus, sem rumo. O guarda-costas do juiz, aparecido das
traseiras da casa, devolveu disparo.
O
velho Quintério Luca tombou vegetalmente, já sem suspiro.
Desde
então, quem passa no bar da vila pode Esmerado Fabião sentado na
eterna mesa, contemplando a cadeira vaga na sua frente. No intervalo
dos cabeceios, ele vai repetindo: – É a sua vez, compadre! É a
sua vez de pedir.
Mia
Couto, in O fio das missangas
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