Medeiro
Vaz não era carrancista. Somente de mais sisudez, a praxe, homem
baseado. As vezes vinha falando surdo, de resmão. Com ele, ninguém
vereava. De estado calado, ele sempre aceitava todo bom e justo
conselho. Mas não louvava cantoria. Estavam falando todos juntos?
Então Medeiro Vaz não estava lá. O que tinha sido antanha a
história mesma dele, o senhor sabe? Quando moço, de antepassados de
posses, ele recebera grande fazenda. Podia gerir e ficar estadonho.
Mas vieram as guerras e os desmandos de jagunços ― tudo era morte
e roubo, e desrespeito carnal das mulheres casadas e donzelas, foi
impossível qualquer sossego, desde em quando aquele imundo de
loucura subiu as serras e se espraiou nos gerais. Então Medeiro Vaz,
ao fim de forte pensar, reconheceu o dever dele! largou tudo, se
desfez do que abarcava, em terras e gados, se livrou leve como que
quisesse voltar a seu só nascimento. Não tinha bocas de pessoa, não
sustinha herdeiros forçados. No derradeiro, fez o fez ― por suas
mãos pôs fogo na distinta casa-de-fazenda, fazendão sido de pai,
avô, bisavô ― espiou até o voêjo das cinzas; lá hoje é
arvoredos. Ao que, aí foi aonde a mãe estava enterrada ― um
cemiteriozinho em beira do cerrado ― então desmanchou cerca,
espalhou as pedras! pronto, de alívios agora se testava, ninguém
podia descobrir, para remexer com desonra, o lugar onde se conseguiam
os ossos dos parentes. Daí, relimpo de tudo, escorrido dono de si,
ele montou em ginete, com cachos d armas, reuniu chusma de gente
corajada, rapaziagem dos campos, e saíu por esse rumo em roda, para
impor a justiça. De anos, andava. Dizem que foi ficando cada vez
mais esquisito. Quando conheceu Joca Ramiro, então achou outra
esperança maior! para ele, Joca Ramiro era único homem,
par-de-frança, capaz de tomar conta deste sertão nosso, mandando
por lei, de sobregovêrno. Fato que Joca Ramiro também igualmente
saía por justiça e alta política, mas só em favor de amigos
perseguidos; e sempre conservava seus bons haveres. Mas Medeiro Vaz
era duma raça de homem que o senhor mais não vê; eu ainda vi. Ele
tinha conspeito tão forte, que perto dele até o doutor, o padre e o
rico, se compunham. Podia abençoar ou amaldiçoar, e homem mais
moço, por valente que fosse, de beijar a mão dele não se vexava.
Por isso, nós todos obedecíamos. Cumpríamos choro e riso, doideira
em juízo. Tenente nos gerais ― ele era. A gente era os
medeiro-vazes.
Razão
dita, de boa-cara se aceitou, quando conforme Medeiro Vaz com as
poucas palavras: que íamos cruzar o Liso do Sussuarão, e cutucar de
guerrear nos fundões da Bahia! Até, o tanto, houve, prezando, um
rebuliço de festejo. O que ninguém ainda não tinha feito, a gente
se sentia no poder fazer. Como fomos: dali do Vespê, tocamos,
descendo esbarrancados e escorregador. Depois subimos. A parte de
mais árvores, dos cerrados, cresce no se caminhar para as
cabeceiras. Boi brabeza pode surgir do caatingal, tresfuriado
com o que de gente nunca soube ― vem feio pior que onça. Se viam
bandos tão compridos de araras, no ar, que pareciam um pano azul ou
vermelho, desenrolado, esfiapado nos lombos do vento quente. Daí, se
desceu mais, e, de repente, chegamos numa baixada toda avistada,
felizinha de aprazível, com uma lagoa muito correta, rodeada de
buritizal dos mais altos: burití ― verde que afina e esveste,
belimbeleza. E tinha os restos de uma casa, que o tempo viera
destruindo; e um bambual, por antigos plantado; e um ranchinho. Ali
se chamava o Bambual do Boi. Lá a gente seria de pernoitar e arrumar
os finais preparos.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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