sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Medeiro Vaz

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Medeiro Vaz não era carrancista. Somente de mais sisudez, a praxe, homem baseado. As vezes vinha falando surdo, de resmão. Com ele, ninguém vereava. De estado calado, ele sempre aceitava todo bom e justo conselho. Mas não louvava cantoria. Estavam falando todos juntos? Então Medeiro Vaz não estava lá. O que tinha sido antanha a história mesma dele, o senhor sabe? Quando moço, de antepassados de posses, ele recebera grande fazenda. Podia gerir e ficar estadonho. Mas vieram as guerras e os desmandos de jagunços ― tudo era morte e roubo, e desrespeito carnal das mulheres casadas e donzelas, foi impossível qualquer sossego, desde em quando aquele imundo de loucura subiu as serras e se espraiou nos gerais. Então Medeiro Vaz, ao fim de forte pensar, reconheceu o dever dele! largou tudo, se desfez do que abarcava, em terras e gados, se livrou leve como que quisesse voltar a seu só nascimento. Não tinha bocas de pessoa, não sustinha herdeiros forçados. No derradeiro, fez o fez ― por suas mãos pôs fogo na distinta casa-de-fazenda, fazendão sido de pai, avô, bisavô ― espiou até o voêjo das cinzas; lá hoje é arvoredos. Ao que, aí foi aonde a mãe estava enterrada ― um cemiteriozinho em beira do cerrado ― então desmanchou cerca, espalhou as pedras! pronto, de alívios agora se testava, ninguém podia descobrir, para remexer com desonra, o lugar onde se conseguiam os ossos dos parentes. Daí, relimpo de tudo, escorrido dono de si, ele montou em ginete, com cachos d armas, reuniu chusma de gente corajada, rapaziagem dos campos, e saíu por esse rumo em roda, para impor a justiça. De anos, andava. Dizem que foi ficando cada vez mais esquisito. Quando conheceu Joca Ramiro, então achou outra esperança maior! para ele, Joca Ramiro era único homem, par-de-frança, capaz de tomar conta deste sertão nosso, mandando por lei, de sobregovêrno. Fato que Joca Ramiro também igualmente saía por justiça e alta política, mas só em favor de amigos perseguidos; e sempre conservava seus bons haveres. Mas Medeiro Vaz era duma raça de homem que o senhor mais não vê; eu ainda vi. Ele tinha conspeito tão forte, que perto dele até o doutor, o padre e o rico, se compunham. Podia abençoar ou amaldiçoar, e homem mais moço, por valente que fosse, de beijar a mão dele não se vexava. Por isso, nós todos obedecíamos. Cumpríamos choro e riso, doideira em juízo. Tenente nos gerais ― ele era. A gente era os medeiro-vazes.
Razão dita, de boa-cara se aceitou, quando conforme Medeiro Vaz com as poucas palavras: que íamos cruzar o Liso do Sussuarão, e cutucar de guerrear nos fundões da Bahia! Até, o tanto, houve, prezando, um rebuliço de festejo. O que ninguém ainda não tinha feito, a gente se sentia no poder fazer. Como fomos: dali do Vespê, tocamos, descendo esbarrancados e escorregador. Depois subimos. A parte de mais árvores, dos cerrados, cresce no se caminhar para as cabeceiras. Boi brabeza pode surgir do caatingal, tresfuriado com o que de gente nunca soube ― vem feio pior que onça. Se viam bandos tão compridos de araras, no ar, que pareciam um pano azul ou vermelho, desenrolado, esfiapado nos lombos do vento quente. Daí, se desceu mais, e, de repente, chegamos numa baixada toda avistada, felizinha de aprazível, com uma lagoa muito correta, rodeada de buritizal dos mais altos: burití ― verde que afina e esveste, belimbeleza. E tinha os restos de uma casa, que o tempo viera destruindo; e um bambual, por antigos plantado; e um ranchinho. Ali se chamava o Bambual do Boi. Lá a gente seria de pernoitar e arrumar os finais preparos.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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