quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O menino mais velho


Deu-se aquilo porque Sinha Vitória não conversou um instante com o menino mais velho. Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a linguagem de Sinha Terta, pediu informações. Sinha Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros.
O menino foi à sala interrogar o pai, encontrou-o sentado no chão, com as pernas abertas, desenrolando um meio de sola.
- Bota o pé aqui.
A ordem se cumpriu e Fabiano tomou medida da alpercata: deu um traço com a ponta da faca atrás do calcanhar, outro adiante do dedo grande. Riscou em seguida a forma do calçado e bateu palmas:
- Arreda.
O pequeno afastou-se um pouco, mas ficou por ali rondando e timidamente arriscou a pergunta. Não obteve resposta, voltou à cozinha, foi pendurar-se à saia da mãe:
- Como é?
Sinha Vitória falou em espetos quentes e fogueiras.
- A senhora viu?
Aí Sinha Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote. O menino saiu indignado com a injustiça, atravessou o terreiro, escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, à beira da lagoa vazia.
A cachorra Baleia acompanhou-o naquela hora difícil. Repousava junto à trempe, cochilando no calor, à espera de um osso. Provavelmente não o receberia, mas acreditava nos ossos, e o torpor que a embalava era doce. Mexia-se de longe em longe, punha na dona as pupilas negras onde a confiança brilhava. Admitia a existência de um osso graúdo na panela, e ninguém lhe tirava esta certeza, nenhuma inquietação lhe perturbava os desejos moderados. As vezes recebia pontapés sem motivo. Os pontapés estavam previstos e não dissipavam a imagem do osso.
Naquele dia a voz estridente de Sinha Vitória e o cascudo no menino mais velho arrancaram Baleia da modorra e deram-lhe a suspeita de que as coisas não iam bem. Foi esconder-se num canto, por detrás do pilão, fazendo-se miúda entre cumbucos e cestos. Um minuto depois levantou o focinho e procurou orientar-se. O vento morno que soprava da lagoa fixou-lhe a resolução: esgueirou-se ao longo da parede, transpôs a janela baixa da cozinha, atravessou o terreiro, passou pelo pé de turco, topou a camarada, chorando, muito infeliz, à sombra das catingueiras. Tentou minorar-lhe o padecimento saltando em roda e balançando a cauda. Não podia sentir dor excessiva. E como nunca se impacientava, continuou a pular, ofegante, chamando a atenção do amigo. Afinal convenceu-o de que o procedimento dele era inútil.
O pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeça da cachorra, pôs-se a contar-lhe baixinho uma história. Tinha um vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, Baleia respondia com o rabo, com a língua, com movimentos fáceis de entender.
Todos o abandonavam, a cadelinha era o único vivente que lhe mostrava simpatia. Afagou-a com os dedos magros e sujos, e o animal encolheu-se para sentir bem o contato agradável, experimentou uma sensação como a que lhe dava a cinza do borralho.
Continuou a acariciá-la, aproximou do focinho dela a cara enlameada, olhou bem no fundo os olhos tranquilos.
Estivera metido no barreiro com o irmão, fazendo bichos de barro, lambuzando-se. Deixara o brinquedo e fora interrogar Sinha Vitória. Um desastre. A culpada era Sinha Terta, que na véspera, depois de curar com reza a espinhela de Fabiano, soltara uma palavra esquisita, chiando, o canudo do cachimbo preso nas gengivas banguelas. Ele tinha querido que a palavra virasse coisa o ficara desapontado quando a mãe se referira a um lugar ruim, com espetos e fogueiras. Por isso rezingara, esperando que ela fizesse o inferno transformar-se.
Todos os lugares conhecidos eram bons: o chiqueiro das cabras, o curral, o barreiro, o pátio, o bebedouro - mundo onde existiam seres reais, a família do vaqueiro e os bichos da fazenda. Além havia uma serra distante e azulada, um monte que a cachorra visitava, caçando preás, veredas quase imperceptíveis na catinga, moitaso capões de mato, impenetráveis bancos de macambira - e aí fervilhava uma população de pedras vivas e plantas que procediam como gente. Esses mundos viviam em paz, às vezes desapareciam as fronteiras, habitantes dos dois lados – entendiam-se perfeitamente e auxiliavam-se. Existiam sem dúvida em toda a parte forças maléficas, mas essas forças eram sempre vencidas. E quando Fabiano amansava brabo, evidentemente uma entidade protetora segurava-o na sela, indicava-lhe os caminhos menos perigosos, livrava-o dos espinhos e dos galhos. Nem sempre as relações entre as criaturas haviam sido amáveis. Antigamente os homens tinham fugido à toa, cansados e famintos. Sinha Vitória, com o filho mais novo escanchado no quarto, equilibrava o baú de folha na cabeça; Fabiano levava no ombro a espingarda de pederneira; Baleia mostrava as costelas através do pêlo escasso. Ele, o menino mais velho, caíra no chão que lhe torrava os pés. Escurecera de figura.
De repente, os xiquexiques e os mandacarus haviam desaparecido. Mal sentia as pancadas que Fabiano lhe dava com a bainha da faca de ponta.
Naquele tempo o mundo era ruim. Mas depois se consertara, para bem dizer as coisas ruins não tinham existido. No jirau da cozinha arrumavam-se mantas de carne seca e pedaços de toicinho. A sede não atormentava as pessoas, e à tarde; aberta a porteira, o gado miúdo corria para o bebedouro. Ossos e seixos transformavam-se às vezes nos entes que povoavam as moitas, o morro, a serra distante e os bancos de macambira.
Como não sabia falar direito, o menino balbuciava expressões complicadas, repetia as sílabas, imitava os berros dos animais, o barulho do vente, o som dos galhos que rangiam na catinga, roçando-se. Agora tinha tido a idéia de aprender uma palavra, com certeza importante porque figurava na conversa de Sinha Terta. Ia decorá-la e transmiti-la ao irmão e à cachorra. Baleia permaneceria indiferente, mas o irmão se admiraria, invejoso.
- Inferno, inferno.
Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim. E resolvera discutir com Sinha Vitória. Se ela houvesse dito que tinha ido ao inferno, bem. Sinha Vitória impunha-se, autoridade visível e poderosa. Se houvesse feito menção de qualquer autoridade invisível e mais poderosa, muito bem. Mas tentara convencê-la dando-lhe um cocorote, e isto lhe parecia absurdo. Achava as pancadas naturais quando as pessoas grandes se zangavam, pensava até que a zanga delas era a causa única dos cascudos e puxavantes de orelhas. Esta convicção tornava-o desconfiado, fazia-o observar os pais antes de se dirigir a eles. Animara-se a interrogar Sinha Vitória porque ela estava bem-disposta. Explicou isto à cachorrinha com abundância de gritos e gestos.
Baleia detestava expansões violentas: estirou as pernas, fechou os olhos e bocejou. Para ela os pontapés eram fatos desagradáveis e necessários Só tinha um meio de evitá-los, a fuga. Mas às vezes apanhavam-na de surpresa, uma extremidade de alpercata batia-lhe no traseiro - saía latindo, ia esconder-se no mato, com desejo de morder canelas. Incapaz de realizar o desejo, aquietava-se. Efetivamente a exaltação do amigo era desarrazoada. Tornou a estirar as pernas e bocejou de novo. Seria bom dormir.
O menino beijou-lhe o focinho úmido, embalou-a. A alma dele pôs-se a fazer voltas em redor da serra azulada e dos bancos de macambira. Fabiano dizia que na serra havia tocas de suçuaranas. E nos bancos de macambira, rendilhados de espinhos, surgiam cabeças chatas de jararacas.
Esfregou as mãos finas, esgaravatou as unhas sujas. Pensou nas figurinhas abandonadas junto ao barreiro, mas isto lhe trouxe a recordação da palavra infeliz. Diligenciou afastar do espírito aquela curiosidade funesta, imaginou que não fizera a pergunta, não recebera portanto o cascudo. Levantou-se. Via a janela da cozinha, o cocó de Sinha Vitória, e isto lhe dava pensamentos maus. Foi sentar-se debaixo de outra árvore, avistou a serra coberta de nuvens. Ao escurecer a serra misturava-se com o céu e as estrelas andavam em cima dela. Como era possível haver estrelas na terra?
A cadelinha chegou-se aos pulos, cheirou-o, lambeu-lhe as mãos e acomodou-se.
Como era possível haver estrelas na terra? Entristeceu. Talvez Sinha Vitória dissesse a verdade. O inferno devia estar cheio de jararacas e suçuaranas, e as pessoas que moravam lá recebiam cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca.
Apesar de ter mudado de lugar, não podia livrar-se da presença de Sinha Vitória. Repetiu que não havia acontecido nada e tentou pensar nas estrelas que se acendiam na serra. Inutilmente. Aquela hora as estrelas estavam apagadas. Sentiu-se fraco e desamparado, olhou os braços magros, os dedos finos, pôs-se a fazer no chão desenhos misteriosos. Para que Sinha Vitória tinha dito aquilo?
Abraçou a cachorrinha com uma violência que a descontentou. Não gostava de ser apertada, preferia saltar e espojar-se. Farejando a panela, franzia as ventas e reprovava os modos estranhos do amigo. Um osso grande subia e descia no caldo. Esta imagem consoladora não a deixava.
O menino continuava a abraçá-la. E Baleia encolhia-se para não magoá-lo, sofria a carícia excessiva. O cheiro dele era bom, mas estava misturado com emanações que vinham da cozinha. Havia ali um osso. Um osso graúdo, cheio de tutano e com alguma carne.
Graciliano Ramos, in Vidas Secas

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