Quando
penso na alegria voraz com que comemos galinha ao molho pardo, dou-me
conta de nossa truculência. Eu, que seria incapaz de matar uma
galinha, tanto gosto delas vivas mexendo o pescoço feio e procurando
minhocas. Deveríamos não comê-la e ao seu sangue? Nunca. Nós
somos canibais, é preciso não esquecer. É respeitar a violência
que temos. E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo,
comeríamos gente com seu sangue. Minha falta de coragem de matar uma
galinha e no entanto comê-la morta me confunde, espanta-me, mas
aceito. A nossa vida é truculenta: nasce-se com sangue e com sangue
corta-se a união que é o cordão umbilical. E quantos morrem com
sangue. É preciso acreditar no sangue como parte de nossa vida. A
truculência. É amor também.
Clarice
Lispector, in Aprendendo a viver
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