Ignoro
se peguei a faca na cozinha e fui até a garagem já com a ideia na
cabeça. Talvez, sabe-se lá por quê, estivesse perambulando pela
casa com a faca na mão, fui parar na garagem e, por curiosidade —
como quem enfia um grampo na tomada ou bolas de gude num escapamento
—, resolvi golpear a parede. Sei é que, quando dei por mim, estava
ali, admirando o pequeno risco branco, a reentrância de massa
corrida recém-surgida na grande tela terracota. Um segundo antes ele
não existia, agora parecia brilhar como um único Starfix na
imensidão de um quarto escuro.
Senti-me
orgulhoso: ao chegar ao mundo, já o havia encontrado pronto, cabia a
mim somente descobrir do que era feito e como funcionava, olhando
embaixo dos vãos, levantando os tacos, cavoucando a terra entre os
paralelepípedos. Desenhos em papéis, colagens de sucata ou as
esculturas de argila que fazia na escola não eram uma intervenção
no mundo — papéis, sucata e argila não eram o mundo, eram coisas
do mundo. Parede era mundo, casa era mundo, e a satisfação por ter
impresso nele minha primeira marca foi tanta que não demorei a
deixar a segunda, a terceira, a quarta, a décima sétima, a
trigésima nona e só quando cheguei esbaforido ao canto da garagem
percebi o estrago: uma faixa de três metros de risquinhos brancos, a
cinquenta centímetros do chão; uma Via Láctea de destruição
percorrendo, de ponta a ponta, a frente da nossa casa. Algo me dizia
que, quando minha mãe chegasse do trabalho e o farol da Brasília
iluminasse aquela lambança, meu frenesi estético não seria capaz
de atenuar sua ira: o mundo havia sido violado por mim, era preciso
repará-lo.
Corri
até meu quarto e peguei o estojo de canetinhas. Tentei pintar as
reentrâncias com o vermelho, o marrom, o rosa, mas nenhuma das cores
batia. Experimentei tons sobrepostos, vermelho com laranja, amarelo
com roxo, rosa com cinza: nada, porém, chegava perto da tal
terracota. Pior: se antes o que se via ali era uma Via Láctea, agora
contemplava uma nebulosa, uma extensa mancha multicolor serpenteando
pela parede.
Voltei
ao quarto, peguei o tubo de Pritt. Tentei colar de volta as
casquinhas de tinta caídas no chão, mas elas se esfarelavam ao
toque, a cola lambuzava a parede e, como se não bastasse, as marcas
das minhas mãos ficaram impressas junto aos riscos feitos à faca,
como uma assinatura. A desgraça era inevitável. Sem opção,
enterrei a faca no jardim e parti para a clandestinidade.
A
clandestinidade era um canto no lavabo, entre a pia e a parede. A
porta, quando aberta, projetava uma sombra sobre o vão, deixando-o
ainda mais protegido. Já havia recorrido àquele refúgio em vários
esconde-escondes e, vez por outra, fugindo do banho: não seria
agora, no sufoco, que ele me deixaria na mão.
Apesar
do frio e da umidade, estar ali era prazeroso: eu não fazia mais
parte do mundo, estava fora dele, observando-o pelas coxias,
invisível e onisciente. Assim permaneci por algumas horas, o
tique-taque de uma goteira marcando a passagem do tempo.
Anoiteceu.
Ouvi o carro da minha mãe chegando à garagem, o motor sendo
desligado, a porta batendo, mas não escutei o som habitual da chave
no trinco ou os passos sala adentro. Como eu temia, ela agora devia
estar lá fora, agachada diante da parede, aterrorizada com meu ato
de vandalismo, meu crime de lesa-pátria (lesa-mátria?). Primeiro,
gritou meu nome. Depois, chamou a Vanda. “Vou ter que repintar a
casa inteira! Vai custar uma fortuna! Onde se enfiou esse menino? Vai
ver só!”
Eu
ia “ver só”, mas só se, antes, elas me vissem — o que nunca
aconteceria, pois ao escutar a voz irada da minha mãe, decidi levar
a cabo a ideia que vinha ruminando desde que compreendera a dimensão
da minha obra na parede: permaneceria escondido para sempre.
O.k.,
eu sabia que “para sempre” seria impossível, em dois ou três
anos eu não caberia mais entre a pia e a parede, mas até lá já
haveria encontrado uma forma de reparar meu erro, fugir de casa ou,
ao menos, me mudar definitivamente para um socavão.
Pensando
bem, não era assim tão ruim. Beberia água da pia quando quisesse,
me alimentaria das maçãs e bananas roubadas da fruteira da cozinha,
de madrugada. (Abrir a geladeira estava fora de cogitação: a porta
rangia, as garrafas se chocavam umas contra as outras, eu acabaria
acordando alguém.) Se estivesse disposto a correr riscos, mais valia
me esgueirar até o quarto e resgatar uns Playmobils para brincar nos
24 ou 36 meses seguintes.
Enquanto
divagava sobre meu futuro na clandestinidade, as duas seguiam me
procurando pela casa, me chamando vez após outra — e foi nas vozes
de minhas perseguidoras que, surpreendentemente, vislumbrei uma
possível salvação. Cada vez que repetiam meu nome, a braveza ia
minguando um pouquinho, dando lugar à preocupação: quem sabe,
quando o desespero trouxesse para o seu lado a última gota de raiva,
eu poderia surgir em segurança? Não seria a alegria por me verem
vivo um habeas corpus, capaz de fazê-las esquecer os eventos
relativos à garagem? Impossível ter certeza, mas era a única
chance: Vanda começou a ligar para os vizinhos, minha mãe foi me
procurar na rua e decidi que, quando ela voltasse, faria a dramática
aparição.
Minutos
mais tarde, minha mãe entrou pela sala quase chorando: “Não tá
lá! Ninguém sabe. Ninguém viu. Deus do céu!”. Era chegado o
momento. Respirei fundo, deixei as pupilas se acostumarem à luz
vinda de fora e estava quase saindo do banheiro quando uma palavra
pronunciada por minha mãe me empurrou de volta ao esconderijo:
talvez eu tivesse superestimado seu amor por mim, talvez tivesse
menosprezado seu apreço pela parede da garagem ou, quem sabe, os
dois juntos, o fato é que — eu havia ouvido claramente — ela
estava prestes a chamar a “polícia”.
Eu
conhecia a polícia pela TV: eles tinham cachorros treinados,
lanternas, óculos para enxergar no escuro, era evidente que me
encontrariam ali, depois achariam a faca enterrada no jardim, me
poriam algemas e me levariam para a cadeia. Melhor me entregar antes
que chegassem. Dizer que estava dormindo no lavabo, isso, que eu
adorava dormir naquele cantinho, bem fresco, que não tinha ouvido
ninguém me chamar. Quanto à parede da garagem: que que tem? Deixa
eu ver… Nossa, que que foi isso?! Será que foi um gato, com as
unhas? Um gato grande consegue, ué, ou dois gatos, um em cima do
outro, sabia que eles fazem isso quando querem arranhar mais alto?
Fazem sim, eu juro, eu já vi mil vezes!
— Mãe?
Antonio
Prata, in Nu, de botas
Aff queria mt saber o que aconteceu
ResponderExcluireu também...
ExcluirPoxa,continua a história......
ResponderExcluira história esta completa e o final é esse.queria saber também.
ResponderExcluirÉ um conto ou é uma crônica?
ResponderExcluirBem como essa pergunta é de 2020 mas enfim é crônica
Excluirquantos anos ele tem
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